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sábado, 20 de junho de 2020

Bangu à beira-mar na Amazon

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domingo, 14 de outubro de 2012

MILHAS À FRENTE: Num intervalo de vinte anos, Miles Davis revirou pelo avesso a história do jazz três vezes seguidas (por Rafael Teixeira)



Em 20 de janeiro de 1949, Harry Truman assumiu o cargo de presidente e discursou no Congresso, em Washington, na primeira posse transmitida pela televisão. Um dia depois, em Nova York, Miles Davis entrou nos estúdios de outro capitólio, a Capitol Records, gravadora cujo emblema era a cúpula do prédio do Congresso. Aos 22 anos, gravou músicas que marcaram a concepção do cool jazz. Dez anos depois, em uma igreja convertida em estúdio da Columbia, ele revirou novamente o panorama da música popular e deu forma ao jazz modal. E, mais uma vez, na década seguinte, também nos estúdios da Columbia, aproximou o jazz do rock para dar origem ao fusion.

No espaço de uma vida, Miles Davis comandou três viradas estéticas, que lhe valeram o epíteto de "Picasso do jazz". Hoje, dezessete anos depois de sua morte - de pneumonia e derrame -, ainda se discute o seu papel como inventor de gêneros jazzísticos, e o quanto ele se valeu de caminhos previamente abertos. Mas, se Davis não inventou propriamente o cool, o jazz modal e o fusion, ele cristalizou os gêneros.

"O status de Miles Davis no mundo do jazz significa que, quando deixava seu nome em um estilo, ele o validava tanto aos olhos do público quando dos jazzistas", disse o crítico inglês Stuart Nicholson. No livro A Vida Como Performance, que traz um perfil do trompetista, o crítico Kenneth Tynan escreveu: "O movimento moderno no jazz tem muitas mansões, mas somente quatro arquitetos: Charlie Parker, Thelonious Monk, Dizzy Gillespie e Davis, o parceiro mais jovem."

Miles Dewey Davis III nasceu em 26 de maio de 1926, em Alton, cidadezinha no estado de Illinois, às margens do rio Mississipi. Filho de uma família abastada, sua infância foi uma perfeita antítese da maior parte dos músicos de jazz de então. Louis Armstrong, o exemplo mais eloquente, nasceu paupérrimo em uma das ruas mais miseráveis de Nova Orleans, filho de uma mãe que se tornou prostituta e de um pai que abandonou a família. Já o pai de Davis era um dentista cuja família tinha uma fazenda de 120 hectares no Arkansas, onde o garoto aprendeu a andar a cavalo. Sua mãe, Cleota Henry Davis, era uma figura respeitada na vizinhança, além de hábil pianista de blues.

Em plena década de 1920, quando boa parte dos Estados Unidos vivia sob leis segregacionistas que impediam negros e brancos de frequentarem o mesmo banheiro público, a família Davis tinha uma empregada e uma cozinheira. Quando o casal e seus três filhos - Dorothy, Miles e Vernon - se mudaram para East St. Louis, em 1927, ele foi morar em um bairro de brancos, nos fundos do consultório de odontologia do pai. Apesar do bem-estar material, Miles Davis passou por maus bocados. Seus pais brigavam muito e sua mãe lhe aplicava uma surra de vez em quando - o que talvez explique, em parte, o motivo pelo qual Davis viria a se tornar arrogante, grosseiro e, eventualmente, violento. Seu pai tinha um gênio péssimo, que o filho sempre suspeitou ter herdado.

Aos 13 anos, Davis ganhou um trompete de seu pai, e começou a ter aulas com Elwood Buchanan, um músico local. Foi por meio dele que Davis começou a desenvolver aquela que seria para sempre a sua marca no trompete: a ausência de vibrato - a vibração da nota final de uma frase musical. Convidado por Buchanan para ver seu aluno tocar, o trompetista Clark Terry (que viria a ser uma das influências de Davis) se lembraria, anos mais tarde, de seus heterodoxos métodos de aprendizado: "Buch tinha uma régua enorme... e toda vez que Miles tremia uma nota, ele o acertava com ela nas juntas dos dedos e dizia: 'Pare de tremer essa nota. Você já vai tremer bastante quando ficar velho.'"

Além disso, foi Buchanan quem incentivou Davis a estudar o estilo mais relaxado de trompetistas como Bobby Hackett e Harold Shorty Baker - um jeito de tocar que guardava algo da primeira das três revoluções que seriam empreendidas pelo trompetista.

Em 1949, quando Davis deflagrou o cool jazz, a Capitol era uma gravadora jovem. Foi a primeira a ter sede em Los Angeles, mas mantinha um estúdio em Nova York, onde estavam boa parte dos músicos de jazz e grandes gravadoras como a RCA Victor, a Columbia e a Decca. Naquele ano, Bing Crosby era um sucesso nacional e Frank Sinatra já aparecera em onze filmes. Em Manhattan, a rua 52 era cheia de clubes, onde tocavam o saxofonista Coleman Hawkins e os pianistas Art Tatum, Thelonious Monk e Bud Powell, e a cantora Sarah Vaughan.

No que diz respeito ao jazz, porém, era o bebop que estava na moda, graças às novidades concebidas pelo saxofonista Charlie Parker e o trompetista Dizzy Gillespie, os pais do gênero. Com os dois, o bebop emancipou o jazz das melodias cantáveis e dançantes que fizeram sua fama até os anos 30. Era um estilo que dava ênfase à técnica, habilidade e inspiração do solista, com harmonias complexas e andamentos rápidos, exigindo muito do músico.

Davis, que tocava profissionalmente desde 1944, assistiu de dentro a popularização do jazz com o bepop, com Parker e Gillespie lotando boates na rua 52. Àquela época, Davis já cheirava cocaína regularmente. Em suas memórias, ele lembra como Parker podia servir de "exemplo" para outros músicos: "Corria a idéia de que o uso da cocaína podia fazer a gente tocar tão bem quanto Bird [o apelido de Parker]."

Convidado por Bird, em 1947, para ser trompetista de seu conjunto, Davis percebeu que não conseguiria - ou que não queria - replicar a torrente sonora dos pais do bebop. Ele era um jovem que tinha Parker como ídolo, mas desenvolveu uma personalidade musical própria: menos elétrica, com notas mais espaçadas, que funcionou às mil maravilhas. Assim o definiu Kenneth Tynan: "Ele é como uma garrafa térmica, que sugere a presença do calor sem irradiá-lo."

Naquele modo de soprar, antecipava-se o cool jazz - segundo alguns jazzófilos, menos como uma busca artística e mais como resolução de um dilema prático. Segundo o crítico americano Gary Giddins, Miles Davis "não tinha o virtuosismo de Dizzy Gillespie", e por isso "criou um jeito de tocar que era mais baseado em timbre e melodia. Tocava pouquíssimas notas, mas fazia com que fossem as notas certas". Stuart Nicholson discordou frontalmente: "A maioria das pessoas que conhece alguma coisa sobre jazz não diria que Davis não tinha o virtuosismo de um Parker ou um Gillespie." Como prova, ele cita gravações, de janeiro de 1949, que originaram o disco The Metronome All Stars, no qual Davis e o trompetista Fats Navarro tocaram com Dizzy Gillespie - e como Dizzy Gillespie.

No fim dos anos 40, Davis era um dos muitos músicos que frequentavam o apartamento do arranjador Gil Evans, em um porão atrás de uma lavanderia chinesa na rua 55, em Manhattan. "Havia todos os canos do prédio, uma pia, uma cama, um piano, uma chapa elétrica de cozinha e nenhum aquecimento", lembrou o sax-barítono Gerry Mulligan em um artigo para a edição de 1971 do álbum Birth of the Cool. Usando o local para ensaios, praticamente o mesmo noneto com que Davis inaugurou o cool jazz se apresentaria por duas semanas no Royal Roost Club, em setembro de 1948.

Segundo Davis conta em suas memórias, "muita gente estranhou a música que a gente tocava", mas o pianista Count Basie teria gostado: "Ele me disse que era 'lento e estranho, mas era bom, bom mesmo'." Notado pelo produtor Pete Rugolo, Davis conseguiu um contrato com a Capitol para gravar doze músicas, que seriam lançadas em discos de 78 rotações (na época, não havia LP).

Foram duas sessões, além da de 21 de janeiro: uma em 22 de abril e outra em 9 de março do ano seguinte, 1950. Seis décadas depois, a música de Birth of the Cool não perdeu o vigor. "Toquei essas faixas com os mesmos arranjos, mas com uma big band, em Amsterdã, em janeiro agora, e o que posso dizer é que elas soaram como novas", lembrou o saxofonista Lee Konitz, aos 81 anos, um dos dois únicos integrantes vivos do grupo.

O caminho do disco foi tortuoso - a Capitol só viria a lançá-lo com esse nome, na forma de LP, em 1957. "Ninguém podia imaginar que estava inaugurando alguma coisa. Esse 'nascimento do cool' só surgiu anos depois. Parecia um bom nome", disse Konitz.

Se hoje Birth of the Cool é item obrigatório em qualquer discoteca jazzística, é porque suas faixas condensaram inovações que vinham sendo observadas isoladamente - como o uso de tuba e trompa no jazz, a execução mais cerebral em contraposição ao jorro intuitivo do bebop, a elegância contida dos arranjos, não exatamente frios como a palavra "cool" pode dar a entender, mas nunca atingindo altas temperaturas. "Bird e Dizzy eram sensacionais, fantásticos, contestadores - mas não eram suaves. Birth of the Cool era diferente, porque dava pra ouvir tudo, e também para cantarolar", escreveu Davis.

O trompetista não inventou o estilo como se nada tivesse acontecido antes. Claude Thornhill já usava tuba e trompa, e a sonoridade de sua orquestra teria grande influência sobre Birth of the Cool. "Havia um fascínio pelas colorações tonais e pelo estilo daquela banda, e a idéia era usar o menor número de instrumentos capaz de reproduzir aquele som", disse Nicholson. Além disso, músicos como o sax-tenor Lester Young já tocavam de um modo que se aproximava do cool.

E Davis não estava sozinho. "Em Birth of the Cool, Miles é importante como agente catalisador, mas Gil Evans, co-mo arranjador-compositor, Lee Konitz, como solista, e Gerry Mulligan, como solista e arranjador-compositor, têm papéis mais significativos nesse marco do jazz do que o trompetista", avaliou o crítico Luiz Orlando Carneiro.

Da mesma maneira, o jazz modal também teve sua existência pré-Kind of Blue, a segunda grande revolução de Davis, registrada dez anos depois. Nessa época, o trompetista já havia conhecido o céu - numa viagem a Paris - e o inferno - o vício em heroína no início dos anos 50. De certa forma, os dois estados se relacionavam intimamente. Em 1949, Davis viajara para a capital francesa com o conjunto do pianista Tadd Dameron. Lá, circulou com Jean-Paul Sartre, Pablo Picasso e a cantora Juliette Greco - com quem teve um romance (ele já tinha dois filhos com sua primeira namorada, Irene Cawthon). "Eu nunca me sentira assim antes", lembrou. "Era a liberdade de estar na França e ser tratado como um ser humano, uma pessoa importante", lembrou. Quando voltou aos Estados Unidos, caiu em depressão e viciou-se em heroína.

O vício lhe custaria caro. Acometido por terríveis síndromes de abstinência, passou a fazer de tudo para conseguir a droga, chegando a trabalhar como cafetão. Não demorou a que os trabalhos como músico começassem a rarear, e se visse transformado de um talento em ascensão a um drogado em fim de carreira. Em 1950, o relacionamento com Irene terminou de vez, e ela retornou a East St. Louis, onde nasceu o terceiro filho do casal. E, como se não bastassem os problemas pessoais e financeiros, a heroína começou a minar aquilo que o trompetista tinha de mais precioso: o talento. "Tinha a embocadura em má forma", lembrou. O sofrimento só terminaria, em 1953, quando Davis, cansado, trancou-se na fazenda do pai e lá ficou por uma semana deitado, suando, com dores horríveis. Até que, um dia, simplesmente acabou. E Davis saiu disposto a recuperar o tempo perdido.

O caminho recomeçou bem, com uma série de discos gravados para o selo Prestige, e, na sequência, com alguns ótimos álbuns para a Columbia. Num deles, Milestones, 1958, o jazz modal apareceu pela primeira vez na obra do trompetista, na música-título - apontando a direção que levaria a Kind of Blue. Àquela época, com o lançamento de Birth of the Cool em LP, o nome de Davis voltava a ser soprado nos meios jazzísticos.

Para além do jazz, a cena musical também ia se transformando: Elvis Presley era uma realidade com quase dez álbuns gravados e Ray Charles vendia seus discos de rhythm and blues como água. Enquanto isso, Davis queria se afastar ainda mais do som de Bird e Dizzy, cuja influência ainda se fazia sentir entre os jazzistas. Só que, agora, ele o faria por outros meios. "Queria reduzir as notas, porque sempre achei que a maioria dos músicos toca demais e por tempo demais", escreveu Davis.

O pináculo da escalada rumo à economia e à simplicidade se daria em 1959, quando da gravação de Kind of Blue, considerado o melhor disco (não necessariamente de jazz) de todos os tempos. Ali, uma vez mais, Davis atuaria como um catalisador, trilhando um caminho iluminado pelo pianista, compositor e arranjador George Russell - outro frequentador do apartamento de Gil Evans na rua 55. Russell inspirou vários músicos a tocar não com base na progressão de acordes, mas em cima de escalas modais. Para efeito de sonoridade, nos solos sobre músicas modais há menos ênfase nas escolhas harmônicas e mais no desenvolvimento da melodia.

Um dos elos mais fortes entre a música modal e Kind of Blue atendia pelo nome de Bill Evans. O pianista tocara com Russell e fora recomendado por ele para o conjunto de Miles Davis. "Foi Evans que ajudou Davis a caminhar para valer na direção da 'modalidade'", afirma Carneiro. E foi assim que, em 2 de março e 22 de abril de 1959, com Evans e outros cinco músicos, entre eles o grande John Coltrane, Davis gravou a obra-prima que viria a se tornar o disco mais vendido de jazz de todos os tempos - 8 milhões de cópias até julho de 2008, segundo a Recording Industry Association of America. "Não tínhamos idéia de que estávamos fazendo algo especial", disse o baterista Jimmy Cobb, aos 80 anos, o único remanescente daquelas sessões. "Sabíamos que tínhamos tocado bem, como de hábito. Afinal, a banda tinha Davis, Bill e todos aqueles caras... Só fui me dar conta de que o disco era histórico quarenta anos depois."

Kind of Blue teve um parto tranquilo, mas atípico. O disco não era exatamente de composições, como se entende normalmente. Tentando extrair o máximo de espontaneidade dos músicos, Davis fez esboços do que todos deveriam tocar, e distribuiu-os em papeizinhos, com explicações vagas, indicações de caminhos pelos quais cada um deveria seguir. Como relata o jornalista Ashley Kahn em seu livro Kind of Blue, às vezes o trompetista avisava em voz alta: "Toque em [compasso] três por quatro." E, outras vezes, sussurrava ao ouvido do solista: "Você é o próximo."

Nenhum dos instrumentistas envolvidos jamais havia tocado qualquer parte daquelas músicas antes de entrar no estúdio. "Tudo que um baterista precisa é de um direcionamento, mesmo", disse Cobb. "Toque mais suave, toque mais forte, acelere o andamento, faça assim, faça assado. Para mim, não mudou muita coisa. Éramos todos profissionais, gente que sabia o que estava fazendo."

De fato, tudo saiu direto na primeira tomada. A faceta artística de Miles Davis parecia estar nos eixos, ainda que sua vida pessoal estivesse sujeita a turbulências. Em 1960, depois de dois anos de namoro, ele se casou com a dançarina Frances Taylor, em uma relação marcada por ciúmes doentios do marido, que não raro descambavam em violência. E Davis ainda usava cocaína com frequência, porque a considerava uma droga "menos condicionante" - não o afetava tanto quando não estava "cheirado". Mas não havia do que reclamar: com suas composições docemente melancólicas (à exceção de Freddie Freeloader), Kind of Blue tornou-se o disco mais vendido de Davis até então, além de um êxito entre os críticos.

A recepção não foi unânime uma década mais tarde, quando Davis, já considerado um gênio do jazz, reuniu um grupo de catorze músicos para gravar Bitches Brew. Naquele fim dos anos 60, a contracultura levava as artes a um plano mais libertário, e o rock'n'roll deixara de ser um gênero recém-nascido para se tornar um fenômeno estabelecido e de massa, de uma predominância que chegou a derrubar a popularidade de vários jazzistas. Davis, por seu lado, se aproximava cada vez mais de outros gêneros musicais. Em 1968, ele ouvia James Brown, Jimi Hendrix e o grupo Sly & the Family Stone. Hendrix e Sly, inclusive, foram apresentados ao trompetista por sua terceira mulher, a cantora Betty Mabry, com quem se casara, em 1968, para se divorciar após um ano, depois de descobrir que ela tinha um caso com Hendrix.

Nesse tempo, a fusão de jazz e rock engatinhava nas mãos de instrumentistas como o saxofonista Charles Lloyd, o vibrafonista Gary Burton e o baterista Tony Williams. Para Davis, os problemas começaram com In a Silent Way, disco gravado em fevereiro de 1969, seis meses antes de Bitches Brew. Nele, apareciam suas primeiras experiências rumo ao fusion, especialmente com a música-título, composta pelo pianista Joe Zawinul.

Em agosto, Davis voltaria aos estúdios da Columbia, onde o ambiente era tenso. A gravadora pretendia alcançar um mercado jovem de potencial evidente, como demonstraram as 400 mil pessoas que apareceram no Festival de Woodstock, em 1969, para ver Joan Baez, Santana e Joe Cocker - além de Hendrix e Sly & the Family Stone, que Davis tanto ouvia. "Eu tinha visto o caminho do futuro com minha música, e ia segui-lo como sempre fizera", escreveu Davis posteriormente. "Não para a Columbia e suas vendas de discos, nem para tentar conquistar alguns jovens compradores de discos brancos. Mas por mim mesmo."

Bitches Brew foi o resultado de três sessões de gravação. Como dez anos antes, Davis levou para o estúdio alguns esboços que nenhum dos músicos havia visto, e regeu a gravação ao sabor dos acontecimentos. O baixista Harvey Brooks relembra: "Sabe, você apenas vai tocando até achar alguma coisa, e isso se torna parte da música."

Foi um assombro. A reunião de duas baterias e dois (às vezes, três) pianos - elétricos, uma heresia - na mesma música, a inclusão de sonoridades nunca dantes navegadas no jazz e o uso sem precedentes de tecnologias de estúdio - loops, ecos, edições - transformaram o disco em um marco. Só não se sabia direito do quê.

"Toda a música era diferente, e isso causava problemas a muitos críticos. Os críticos querem sempre classificar todo mundo", escreveu Davis. Até hoje, discute-se se o disco é ou não jazz. Segundo Luiz Orlando Carneiro: "Pelo menos para mim, o álbum é um monumento à música pop planetária."

Em um célebre arranca-rabo, o trompetista Wynton Marsalis - então com menos de 30 anos, mas notório defensor das raízes do jazz - criticou o colega na imprensa, dizendo que ele era "um velho que queria parecer jovem". Ao que Davis respondeu: "E Wynton é um jovem querendo parecer velho." O disco foi um sucesso comercial, e durante anos vendeu mais do que Kind of Blue.

Bitches Brew acabou inaugurando um estilo - como o fizeram Birth of the Cool e Kind of Blue antes dele. Miles Davis foi o jazzista que mais revoluções deflagrou na música americana do século XX. Foi ele quem forçou os limites do jazz até o ponto em que o próprio gênero parecia ter se tornado outra coisa. Sob esse ponto de vista, foi maior do que gênios de alto quilate, como Louis Armstrong, Duke Ellington ou Charlie Parker.

"Parker viveu muito pouco, morreu aos 34 anos, mas Armstrong e Ellington, de certa forma, se acomodaram artisticamente, independentemente da qualidade do que produziram do meio para o fim de suas vidas", diz o crítico Antônio Carlos Miguel. "Miles continuou procurando novos caminhos e desafios."

É um exercício interessante - e infrutífero - especular o que Miles Davis poderia ter feito, se tivesse tido saúde para viver além dos 65 anos com que morreu, com um quarto filho, divorciado da quinta mulher, e finalmente limpo da cocaína e do álcool. Teria enveredado pela música eletrônica, hip-hop, ou rap? No último parágrafo de sua autobiografia, ele dá uma pista: "Me sinto forte criativamente hoje, e ficando mais forte." E arremata: "Sinto que o melhor ainda está por vir."

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quinta-feira, 4 de outubro de 2012

CODINOME, FRANCIS NEWTON – por Eric Hobsbawm*




Devo meus anos como jornalista de jazz à peça Look Back in Anger, de John Osborne, que  obrigou o establishment cultural britânico de meados dos anos 1950 a registrar a existên­cia daquela forma musical tão evidentemente querida dos novos e talentosos Angry Young Men. Quando, ao precisar de dinheiro, eu vi que Kingsley Amis escrevia no The Observer sobre um assunto do qual ele obviamente entendia não mais, e talvez menos, do que eu, liguei para um amigo que trabalhava no New Statesman. Ele agendou um encontro com o editor, Kingsley Martin, então no apogeu de sua glória, que disse “Por que não?”, explicou que concebera seu leitor padrão como um funcionário público de 45 anos, e me encaminhou para a comandante da segunda metade (cultural) da revista, a formidável Janet Adam Smith. Seus interesses iam de montanhismo a poesia, mas não incluíam jazz. Assinando como Francis Newton (tomando emprestado o nome de um trom­petista de jazz comunista que tocou na versão de Billie Holiday para “Strange Fruit”), eu escrevi para o New Statesman mais ou menos uma coluna por mês, por aproximadamente dez anos.

Eram bons tempos para escrever sobre jazz. Não ape­nas a coluna me dava algum alívio das convulsões pessoais e políticas do ano de 1956, aquele ano de crise comunista,1 como era a primeira vez desde 1935 que os músicos de jazz americanos podiam ser ouvidos ao vivo na Inglaterra. Até aquele momento, o típico fã de jazz britânico, bem infor­mado pela Melody Maker e por minúsculos jornais de debate, sobrevivera essencialmente numa dieta à base de discos de 78 rpm, apaixonadamente analisados por jovens do andar de cima dos “clubes de ritmo” dos anos 1930. Um surpreendente número desses discos fora produzido nos EUA para o mercado britânico, mas os aficionados barra-pesada, especialmente o pequeno, porém pioneiro, grupo de entusiastas de blues, também haviam criado suas próprias redes de importação de discos americanos.

Eu ficara nas franjas dessa comunidade de experts desde o início dos anos 1930, graças a meu primo Denis Preston, que mais tarde se tornaria uma figura inovadora na área da produção musical; mas, até o exemplo de Kingsley Amis ter me dado coragem, eu sofria de uma admiração paralisante que me impedia de entrar em seus debates. Jovens e absolutamente provincianos, suburbanos e musicalmente analfabetos, eles eram mais críticos apaixonados e propagandistas do que músicos propriamente ditos.

Na época em que Francis Newton havia nascido, esses aficionados tinham criado um ambiente jovem, pop e bastante original para o jazz tradicional, que reproduzia versões do jazz de New Orleans e do country blues, até então gêneros muito mais conhecidos na Inglaterra do que nos EUA. Em uma de minhas primeiras colunas, registrei a súbita lucratividade do jazz tradicional “e mesmo do último refúgio contra a bancarrota, o canto do blues”, como demonstravam as lucrativas, porém nada notáveis, imita­ções de “Reckless Blues”, de Bessie Smith, e a versão marginal e líder nas paradas de Huddie Ledbetter para “Rock Island Line”, cantada por um sur­preso e inocente guitarrista britânico, Lonnie Donegan. “O que significava isso?”, era a minha pergunta. Agora sabemos que significava o início do rock britânico, os Beatles e os Rolling Stones, prestes a transformar a indústria pop americana no início dos anos 1960. Esse fenômeno nunca arrebatou a minha geração, ou a da maioria dos músicos de jazz, e muito menos os músicos de estúdios altamente profissionalizados que precisaram transformar produtos iletrados e amadorísticos em música.

Mas o que Francis Newton significava para mim? A atração que eu sentia não se explicava tanto pela oportunidade de resenhar as performances e os discos de jazz que agora chegavam em enxurrada, ou mesmo pela tentativa de encaixar essa música extraordinária na sociedade do século 20. Era a chance de entender os músicos e seu mundo: em resumo, “a cena do jazz”. Eu morava no fim do West End, e dar aulas em Birkbeck me deixava livre a maior parte do dia, então era possível combinar minha profissão com os hábitos noturnos e nada madrugadores da “cena”. Meu quartel-general era o Downbeat Club, na Old Compton Street, a alguns minutos a pé da minha casa, uma espelunca que, como tantos outros músicos modernos e seus saté­lites de Londres, eu usava como base para os momentos fora do expediente.

Embora alguns músicos eventualmente tocassem naquele lugar, que às vezes também contratava um pianista, o Downbeat era mais um clube que uma casa de shows, ao contrário do novo empreendimento de Ronnie Scott, então começando numa Lisle Street ainda não orientalizada, aonde se ia não para beber ou fofocar, mas para ouvir. Havia também algumas espelun­cas no Soho onde se podia fazer tudo isso ao mesmo tempo.

Lembro mais vivamente dos clubes que dos shows, nos quais músicos visitantes ganha­vam o seu pão de cada dia, embora apenas nos EUA eu iria conhecer a glória de uma “cena” jazz baseada primordialmente nos clubes. Devo ter sido um dos últimos a ouvir a grande banda de Ellington, visivelmente à vontade em seu habitat natural, fazendo um típico show de clube, “derretendo”, como eu descrevi, “uma dura plateia de advogados, médicos, jornalistas e lobistas quarentões de São Francisco a ponto de eles se parecerem com noivas de antigamente”. Suponho que isso e o encontro com o trágico pianista Bud Powell em seu quarto de hotel em Paris, catatônico exceto quando diante do teclado, são as mais vívidas lembranças dos meus anos jazzísticos.

Logo se tornou óbvio que havia uma lacuna substancial, tanto de gosto quanto de contexto, entre aqueles de nós – a maioria dos que escreviam sobre jazz, mas também músicos bem-sucedidos – que se entusiasmaram com a música nos anos 1930 e 1940 e o pequeno corpo de músicos ingleses sérios e profissionais que tocavam e formavam o único público existente para o jazz “moderno” antes de Miles Davis fazer sentir seu impacto. Escrever sobre jazz nos anos 1950 significava, basicamente, tentar entender o bebop ou ao menos aprender a lidar com ele (mesmo Philip Larkin, um conservador amante do jazz, acabou sentindo que precisava dar um passo nessa direção), mas eu não sei até que ponto tive sucesso, a não ser pela admiração por Thelonius Monk e a paixão instantânea pelo talento supremo e inteligente de Dizzy Gillespie, o mais impressionante trompetista do mundo, a quem não faltava nenhum dom, a não ser a disposição de revelar a própria alma, como Charlie Parker havia feito. Minha admiração por Miles Davis baseava-se em seus discos, e não em nenhuma performance a que eu tivesse assistido.

Eu desfrutava da companhia dos músicos, e eles me aceitaram como uma excentricidade na “cena” (nenhum milieu é mais tolerante que o dos músicos de jazz), às vezes como uma espécie de dicionário ambulante, capaz de dar respostas a suas perguntas (quando não musicais). Lembro de uma feita pela namorada de um saxofonista tenor, que queria saber se era certo acreditar em Deus. Mas alguém não músico seria capaz de entender a essência de músicos criativos, por mais que convivesse com eles? Afinal, como um deles me disse (creio que foi o saxofonista tenor Sonny Stitt), “as palavras não são meu instrumento”. Para um não músico branco se aproximar dos artistas negros era ainda mais difícil. Até o grande êxodo dos músicos americanos nos anos 1960, quando a “cena” do jazz entrou em colapso nos Estados Unidos, poucos deles viviam na Europa.

É verdade que não parecia se fazer muita diferença entre brancos e negros no Downbeat Club, e a jovem Cleo Laine ficava perfeitamente confortável descrevendo-se como uma “crioula cockney”, mas os músicos afro-americanos visitantes tinham consciência da questão racial mesmo na tolerante Europa, assim como, quase com certeza, tinham também os que vinham das colônias britânicas no Caribe, como o talentoso e aventureiro sax alto Joe Harriott, que era um componente importante da “cena” moderna. Ainda assim, nas excursões, que eram seu meio de vida permanente, os americanos costumavam ouvir perguntas de admiradores brancos sobre o tema, e músicos experientes, que dependiam inteiramente do circuito branco, notadamente os cantores de blues, tinham uma narrativa genuinamente informativa pronta.

Na condição de único acadêmico a escrever sobre jazz, e sob auspícios cultu­rais de classe alta, Francis Newton naturalmente acabou servindo de guia turís­tico para os intelectuais estrangeiros no fervilhante Soho. Ele também se viu atraído para a boemia cultural avant-garde britânica, que fazia interseção com a “cena” jazz não bop. George Melly e “Trog” (Wally Fawkes, o clarinetista da Escola Humphrey Lyttelton) já estavam produzindo a Flook, sua tira de quadrinhos satírica e socialmente perspicaz, publicada, quem diria, no Daily Mail.

Ainda guardo o cartão de sócio do Muriel Colony Club, na Dean Street, que alguém – mais provavelmente Colin MacInnes – me impingiu, porém aquele agrupamento alcoólico não era a minha, nem o jazz era a deles, embora uma vez eles tenham tido uma música de fundo decente, tocada por um agradável pianista caribenho. Encomendaram-me quase imediatamente um livro. Falando clara­mente, encarnar Francis Newton reforçou meus contatos com aqueles de quem os músicos dependiam, os agentes, programadores e todo o resto do mundo empresarial pop, no qual o jazz era uma pequena parte. Suas opiniões privadas sobre “o talento” divergiam amplamente daquelas emitidas em público.

Vi-me então membro de uma rede global de amantes intelectuais do jazz. Uma vez que, fora da Inglaterra, esses ainda julgavam partilhar uma fé pró­xima ao underground, se é que não mais perseguida, eles – e especialmente os escritores – formavam uma rede internacional surpreendentemente efetiva de confiança e ajuda mútuas. Nos Estados Unidos, isso não foi tão longe quanto no Japão, onde, como eu iria descobrir naqueles bares minúsculos, os acadêmicos mais formais – e quem pode ser mais formal que um reitor japo­nês? – se abriam com uma inconcebível franqueza, simplesmente porque um convidado que eles nunca tinham visto antes era amante de jazz. Logo percebi que a solidariedade do jazz, que caminhava a par da promoção de Kafka no primeiro estágio da Primavera de Praga, era igualmente intensa na Tchecos­lováquia. Quando as trilhas sonoras de Miles Davis e do Modern Jazz Quartet para os filmes da nouvelle vague apareceram, nos anos 1950, esperava-se que os intelectuais franceses se engajassem no jazz moderno, mas, como de hábito, eles não deram muita atenção para os críticos de jazz não franceses.

No território americano, a solidariedade do jazz consistia mais em aju­das concretas. Os críticos locais de jazz faziam tudo o que podiam para ajudar um desconhecido chegado de Londres, desde reser­var um quarto de hotel no Greenwich Village até encaminhá-lo a um crítico depois do outro para que o guiassem na “cena” de alguma cidade menos conhecida. Ajudou ainda o fato de muitos divulgadores de jazz e blues terem origem na esquerda dos anos 1930 e 1940, com destaque para o maior de todos os descobridores de talentos do jazz, John Hammond Jr., com seu corte de cabelo militar, cujas opiniões iriam ter grande influência sobre mim.

Foi apenas em minha primeira viagem aos Estados Unidos, onde todas as escolas e todos os artistas sobreviventes podiam ser ouvidos ao mesmo tempo, que eu percebi a sorte que Francis Newton havia tido: essa era uma época de ouro para o jazz, em grande parte porque os ultraboppers dos anos 1940 haviam se reunido e renovado o mainstream musical. E foi só em minha segunda viagem, em 1963, que percebi o quão rápido o tsunami do rock’n’roll havia levado tudo embora. O Birdland havia fechado as portas. Durante quase todos os 20 anos seguintes, o jazz mal existia para os jovens, a não ser no meio universitário, como parte de uma cultura elevada e de adultos – algo como a música clássica, só que com menor número de adeptos. O público que restava interessado nas performances ao vivo sofria a oposição emergente de uma nova “forma livre” de jazz, musical­mente radical. O paradoxo é que, com isso, o movimento mais radical e racial­mente militante do jazz foi politicamente isolado de suas bases constitutivas afro-americanas.

Nessa época, minha vida estava mudando. Minha esposa, Marlene, alega que a pedi em casamento num show de Bob Dylan. O casamento e os filhos pequenos, inevitavelmente, puseram fim aos hábitos noturnos desregrados de Francis Newton, embora não às resenhas de shows e discos. Mas já não era tão divertido, a não ser na impactante e perturbadora primeira visita à Inglaterra de Ray Charles, que ouvi pela primeira vez entre os poucos bran­cos em um canto de um grande baile de rock’n’roll em Oakland, na Califórnia, em meio a um grupinho de brancos, quando ele ainda era conhecido apenas do público negro. Eles não dançaram muito enquanto Ray Charles cantava. Agora não só uma grande estrela pop, mas também um santo inovador, o quarto na linha sucessória formada por Lester Young, Billie Holiday e Charlie Parker, e certamente um monstre sacré, ele “trabalhava” a platéia no Finsbury Park Astoria, com sua “santificada” voz de blues, num estilo que combinava efeitos do showbiz com emoção e muita alma.

Ainda fico arrepiado ao lembrar de mim ouvindo aquele homem corcunda, magro, infeliz e cego, enquanto ele arrebatava a platéia ao dizer “eu já fui cego, mas agora consigo ver”. Aquela noite, além do meu espetacular fracasso em reconhecer o potencial dos Beatles (nunca tive tempo para os Stones), permanece como a última lembrança dos anos de Francis Newton cobrindo a “cena” para os leitores do New Statesman.

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Este ensaio de Eric Hobsbawm (1917 – 2012) foi publicado originalmente na revista Serrote nº 6 e se encontra disponível no seguinte endereço eletrônico: http://www.revistaserrote.com.br/2012/10/codinome-francis-newton-por-eric-hobsbawm/
1. Referência à revolução húngara de 1956 contra o domínio soviético. [N. do T.]

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ERIC HOBSBAWM (1917) é autor de clássicos da historiografia contemporânea, como a tetralogia A era das revoluções, A era do capital, A era dos impérios e A era dos extremos. Sua obra sempre andou de par com a militância no Partido Comunista inglês, o que tornou Hobsbawm um dos principais pensadores críticos do marxismo, assinando inclusive a organização da monumental História do marxismo. A paixão pela música também inspirou seu trabalho acadêmico, notadamente com A história social do jazz e Pessoas extraordinárias: resistência, rebelião e jazz.

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sexta-feira, 28 de setembro de 2012

STAN HASSELGARD, O EXCELENTE CLARINETISTA SUECO QUE MORREU MUITO CEDO. Um texto de osé Domingos Raffaelli.




Todos sabem que os Estados Unidos são a pátria do jazz, motivo porque a  ambição dos músicos de jazz de todo o mundo é lá se estabelecerem para seguir suas carreiras de jazzmen. Muitos deles, especialmente os mais talentosos, realizaram esse objetivo com sucesso e a lista é quase interminável, entre eles George Mraz, Toshiko Akyioshi, Atila Zoller, Dave Holland, Valery Ponomarev, George Shearing, Paquito D’Rivera, Claudio Roditi, Anat Cohen, Arturo Sandoval, Sylvia Cuenca, Luis Bonilla, Papo Vasquez, Nestor Torres, entre muitos outros, e nosso focalizado de hoje, o clarinetista sueco Ake Stan Hasselgard (10/4/1922-23/11/1948), que gravara em seu país com o trombonista Tyree Glenn e o baixista Simon Brehm, entre outros.

Hasselgard tinha 24 anos quando foi para os Estados Unidos em julho de 1947 com o objetivo de matricular-se na Universidade Columbia para um curso da História da Arte Universal. Como tocava jazz, em New York logo interessou-se pelo ambiente jazzístico da cidade, ficando profundamente impressionado pelo conjunto de Dizzy Gillespie, então no auge do movimento bebop. Todavia, quando acabou seu dinheiro, Stan decidiu viajar para a Costa Oeste americana, mais precisamente em Los Angeles, onde logo entrosou-se com os músicos locais, entre eles o guitarrista Barney Kessel, que no início de 1947 participara das históricas gravações de  Charlie Parker para a Dial. Logo ficaram amigos e Barney Kessel ensinou os segredos do idioma bebop a Stan, que ficou empolgado pelo então novo estilo.

Entrosado no ambiente musical de Los Angeles, Stan participou de uma jam session em Hollywood, em 29 de abril de 1947, que foi gravada, ao lado de Wardell Gray (sax-tenor), Howard McGhee (trompete), Sonny Criss (sax-alto), Dodo Marmarosa (piano), Charles Drayton (baixo) e Jackie Mills (bateria), resultando em longas interpretações de “How Hiogh the Moon” e “C Jam Blues”.

A essa altura, o famoso clarinetista Benny Goodman ouviu Stan Hasselgard e ficou tão impressionado com seu talento que convidou-o na hora para tocar no seu conjunto, tonando-se o único clarinetista solista a tocar com Goodman, que o tinha na mais alta estima declarando que ele poderia ter sido o maior de todos os clarinetistas do jazz moderno.

Assistindo uma gravação da orquestra do maestro Frank Devol, bastante entusiasmado ele propôs gravar com Kessel e outros músicos quatro composições, ideia prontamente aceita pelo diretor da gravadora Capitol, perpetuando em 28 de Novembro de 1947 ”I’ll Never Be the Same”, “Swedish Pastry” (de Kessel), “Sweet and Hot Mop” (baseada nas harmonias de “Sweet and Lovely”), “Who Sleeps” (baseada nas harmonias de “Jeepers Creepers” e “Bop” (de Red Norvo e Shorty Rogers). Além de Stan e Barney Kessel, tocaram Red Norvo (vibrafone), Ray Linn (trompete), Jimmy Giuffre (sax-tenor), Dexter Gordon (sax-tenor), Red Callender (baixo) e Jackie Mills (bateria). Dois dias depois, em 30 de Novembro de 1947 os mesmos, com o pianista Dodo Marmarosa, gravaram “I’ll Follow You”.

Essas foram as únicas gravações de Hasselgard em estúdio e através delas  ficou claro que ele encontrara sua maneira de tocar com improvisações criativas, sonoridade clara, fluente e com muito suingue, como comprovam seus solos brilhantes em “Swedish Pastry”, “Who Sleeps”, “I’ll Never Be the Same” e “I’ll Follow You”.    

Infelizmente, Stan nunca ouviu essas gravações porque morreu tragicamente num desastre de automóvel poucos dias depois de completar 26 anos, marcando o fim de uma das mais fugazes passagens pelo jazz de um jovem que tinha tudo para projetar-se definitivamente no país do jazz.

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De volta à ativa, após um longo período de hibernação, o blog tem a honra de trazer aos amigos mais um brilhante texto do nosso querido e admirado José Domingos Raffaelli, uma das maiores autoridades em jazz de qualquer época. Na radiola, alguns temas de Hasselgard, extraídos do álbum “Stan Hasselgård & Benny Goodman” (1948), gravado ao vivo no clube Click, Filadélfia, e conta com as participações de Teddy Wilson (piano), Wardell Gray (sax tenor), Arnold Fishkind (contrabaixo), Billy Bauer (guitarra) e Mel Zelnick (bateria). Espero que vocês curtam e tenham um pouquinho de paciência, até que as postagens voltem ao ritmo habitual. Grande abraço a todos.

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quinta-feira, 19 de julho de 2012

O QUE É QUE HÁ, VELHINHO?




O coelho Pernalonga é um dos mais longevos e queridos personagens da TV, com algumas incursões pelos quadrinhos e pelo cinema. Malandro, espirituoso, inteligente e sarcástico, ele é capaz de escapar das mais perigosas situações usando apenas o seu proverbial carisma e sua lábia aparentemente infinita. Criado em 1940 pelo animador Tex Avery e pelo roteirista Robert McKimson, ele até hoje encanta adultos e crianças do mundo inteiro.

Seus embates com adversários como o irascível Eufrazino, o atrapalhado Hortelino Troca-Letra e o invejoso Patolino estão entre os momentos mais criativos e hilariantes dos desenhos animados. Nos Estados Unidos, sua voz era feita pelo lendário Mel Blanc, responsável por dar vida a outros personagens clássicos como o Pato Donald e o Pica-Pau. No Brasil, coube ao dublador Mário Monjardim a honra de fazer a voz do coelho mais esperto do pedaço, na maior parte dos episódios exibidos no país.

Em 1996, Pernalonga protagonizou, juntamente com os astros do basquete Michael Jordan, Pat Ewing e Charles Barkley, o sucesso “Space Jam”, uma amalucada produção que mistura atores de carne e osso com personagens de desenho animado. O filme foi dirigido por Ivan Reitman e arrecadou mais de 230 milhões de dólares. Em 2002 o coelho foi eleito pela revista TV Guide como o mais importante personagem dos desenhos animados, ficando à frente de pesos-pesados como o Mickey Mouse, o Pato Donald, o Scooby-Doo e o Homem-Aranha.

Claro que nos desenhos do Pernalonga não poderia faltar um pouco de jazz e nomes respeitáveis, como Shorty Rogers, Bud Shank e Buddy Collete, participaram da trilha sonora de alguns dos seus episódios. O tema de abertura, “The Merry-Go-Round Broke Down”, de Cliff Friend e Dave Franklin, chegou a ser gravado por Barney Kessel. Muito embora não possuísse o mesmo temperamento irreverente, o saxofonista Johnny Hodges pode ser considerado uma espécie de Pernalonga do jazz.

A longevidade da carreira, sua a capacidade de se safar de qualquer situação e o amor que lhe devotavam crítica, público e colegas de profissão o colocam em um patamar bastante especial na história do jazz. Sua importância para o jazz, portanto, é comparável à do Pernalonga para a história dos desenhos animados. Além disso, para tornar ainda mais parecida a trajetória do músico e do personagem do desenho animado, Hodges atendia pelo simpático apelido de “Rabbit” (Coelho).

É quase consensual que antes do aparecimento de Charlie Parker, Johnny Hodges e Benny Carter reinaram absolutos no sax alto, sendo que ambos também foram bastante felizes em agregar às suas influências as idéias revolucionárias advindas com os músicos do bebop. Mas existem diferenças importantes entre as trajetórias dos dois. Benny construiu uma carreira solo das mais admiráveis, como instrumentista, compositor, arranjador e bandleader, sendo também um trompetista de vastos recursos. Hodges, por sua vez, concentrou-se apenas no sax alto e embora tenha se aventurado na composição e nos arranjos, jamais adquiriu a mesma notoriedade como bandleader.

Além disso, o nome de Hodges é absolutamente indissociável do nome de Duke Ellington, em cuja orquestra atuou por mais de quarenta anos e onde se notabilizou como o seu mais fulgurante solista. Tanto Ellington quanto Billy Strayhorn, seu maior parceiro nos arranjos e nas composições da big band, costumavam compor pensando, especificamente, nas características e na sonoridade de alguns membros da orquestra.  

Johnny Hodges foi, provavelmente, o músico mais contemplado por Ellington e Strayhorn com essa distinção. Dono de um fraseado singular e dotado de uma assombrosa versatilidade, ele era capaz de transitar pelo swing, pelo blues e pelas baladas com igual desenvoltura. Para o crítico britânico Richard Cook, ele “possuía um tom adocicado e uma abordagem tão perfeitamente ajustada que os sons saíam com um frescor quase indecente e uma jovialidade encantadora”.

John Cornelius Hodges nasceu no dia 25 de julho de 1906, na cidade de Cambridge, estado do Massachusetts. O amor pela música veio por intermédio da mãe, que tocava um pouco de piano. Em meados da década de 10, a família se mudou para Boston em busca de melhores condições de vida e o jovem Johnny logo se tornou amigo de um aspirante a saxofonista chamado Harry Carney, que no futuro seria seu grande parceiro na big band de Ellington, a bordo de um imponente sax barítono.

Aliás, Carney entrega o jogo e revela que Johnny ganhou o apelido de “Rabbit” na adolescência, porque era louco por cenouras e sanduíches de tomate e “soava como um coelho, ao mastigar”. Por conta da influência materna, o primeiro instrumento a que Hodges se dedicou foi o piano, trocado pouco depois pela bateria. Aos doze anos, decidiu experimentar o saxofone soprano e tomou gosto pela coisa. Seu primeiro ídolo foi Sidney Bechet e o garoto teve a honra de assisti-lo em uma apresentação em Boston. Após o concerto, Johnny se dirigiu aos bastidores e Bechet não apenas foi extremamente receptivo como também lhe deu diversas dicas sobre o instrumento.

Mesmo sendo essencialmente autodidata, Hodges demonstrou uma grande aptidão para o sax soprano e decidiu que seu futuro seria se tornar músico profissional. Decidido a tentar a sorte, mudou-se para Nova Iorque, em 1924, e ali acabou sendo contratado pelo pianista Willie “The Lion” Smith, cujo quarteto era atração fixa do Rhythm Club. No ano seguinte, reencontrou Sidney Bechet e tornou-se membro de sua banda, atração do Club Basha. Foi nessa época que ele adotou o sax alto e passou a dominá-lo com extrema perícia.

Em 1926 a orquestra de Chick Webb fazia um enorme sucesso no Savoy Ballroom e os bailes que realizava ali atraíam milhares de jovens praticamente todos os dias. O célebre bandleader contratou Hodges para a sua banda e ele permaneceu ali até maio de 1928. Foi naquele ano que Johnny, após breves passagens pelas orquestras de Lloyd Scott, Bobby Sawyer e Luckey Roberts, se juntou à Duke Ellington’s Orchestra. O resto é história, como diriam os antigos.

A empatia entre os dois foi imediata e a integração manifestou-se de uma maneira quase telepática. Além disso, o jovem saxofonista se viu cercado por alguns dos mais brilhantes músicos do início do século XX, como o baterista Sonny Greer, o saxofonista tenor Otto Hardwick, o trombonista Joe “Tricky Sam” Nanton e o clarinetista Barney Bigard, circunstância que lhe permitia um aprendizado contínuo e lhe ajudava a desenvolver a autoconfiança.

Em novembro daquele mesmo ano, Johnny fez os seus primeiros registros em estúdio ao lado da orquestra de Ellington, para a Okeh Records. Suas performances em gravações como “The Blues with a Feeling”, “Yellow Dog Blues”, “Stevedore Stomp”, “Tishomingo Blues”, “The Mooche” e “Beggar’s Blues”, dobrando nos saxes alto e soprano, foram tão impressionantes que levaram o crítico e escritor Albert Murray a proclamar que “provavelmente, nem Bessie Smith consegue cantar os blues tão bem quanto Johnny Hodges é capaz de tocá-los”.

Os anos 30 foram fundamentais para o desenvolvimento e a consolidação da orquestra de Ellington como a mais influente daquele período, embora não fosse a primeira em popularidade, ficando atrás de big bands como as dos irmãos Dorsey, de Benny Goodman e, sobretudo, de Glenn Miller. Todas eram fabulosas, certamente, mas nenhuma delas tinha o brilho ou exercia fascínio igual ao da Duke Ellington’s Orchestra.

Além disso, foram sendo incorporados àquele verdadeiro celeiro de craques alguns dos mais formidáveis instrumentistas de qualquer época, como os trombonistas Juan Tizol (que entrou em 1929) e Lawrence Brown (1932), os trompetistas Cootie Williams (1929) e Rex Stewart (1933), e o saxofonista Marshal Royal. Hodges cresceu como solista, na mesma medida em que a big band conquistava o respeito e a admiração de público e crítica.

Canções como “Prelude to a Kiss” e Squatty Roo”, de 1938, “Warm Valley”, de 1940, “Things Ain’t What They Used To Be”, composta pelo filho de Duke, o futuro bandleader Mercer Ellington, em 1941, e “Passion Flower”, também lançada naquele ano, mas de autoria do genial Billy Strayhorn, ajudaram a consolidar a mística da orquestra de Ellington e a firmar o nome de Hodges como o mais respeitado e influente altoísta das décadas de 30 e 40.

Para que se tenha uma idéia do seu prestígio, Benny Goodman costumava dizer que “Hodges é, de longe, o maior saxofonista alto que eu já ouvi”. Tanto é assim que o clarinetista fez questão de convidá-lo para participar do célebre concerto do Carnegie Hall, realizado em 1938. Johnny também atuou como sideman em álbuns da Teddy Wilson e Lionel Hampton e abocanhou inúmeros prêmios de melhor altoísta, concedidos por revistas especializadas como a Downbeat, a Metronome e a Esquire.

Apesar de atuar dentro de uma orquestra, Hodges sempre preservou intacto o seu individualismo como intérprete, mantendo-se como uma voz de enorme personalidade. O próprio Ellington era o primeiro a reconhecer essa qualidade, tendo declarado certa vez: “Johnny Hodges possui uma absoluta independência em sua maneira de se expressar. Ele diz o que quer dizer com o seu instrumento, nos seus próprios termos, em sua própria linguagem, a partir de uma perspectiva bastante pessoal”.

No entanto, o que parecia impossível aconteceu: em 1951 Hodges deixou a big band de Ellington de maneira bastante conturbada. As desavenças começaram quando o saxofonista passou a reivindicar a autoria de algumas canções compostas por Ellington, cujo processo criativo se notabilizava pela apropriação de frases criadas por vários dos seus músicos. O trombonista Lawrence Brown explica como essa simbiose funcionava: “Alguém tocava uma linha melódica, Ellington apanhava a idéia, elaborava um contraponto àquela melodia e ao final aparecia com uma coisa absolutamente nova”.

Mas Hodges não se conformava em ficar sem os créditos por suas colaborações para o repertório da banda e o clima entre ele e o líder tornou-se insustentável. Reza a lenda que durante um concerto, após executar um solo numa das composições que ele afirmava ter sido baseada em suas idéias, o saxofonista interpelou o maestro de forma irônica, esfregando o polegar e o indicador, como se estivesse contando dinheiro e perguntando: “Onde está a minha grana”?

Após deixar Ellington, o saxofonista montou seus próprios grupos, inclusive uma big band, mas não foi bem-sucedido, do ponto de vista financeiro. Apesar de contar com os talentos de alguns ex-companheiros da banda de Duke, como o trombonista Lawrence Brown e o baterista Sonny Greer, além de um jovem tenorista chamado John Coltrane, a big band de Hodges emplacou um único hit, “Castle Rock”, composta pelo também saxofonista Al Sears, mas o sucesso solitário não foi suficiente para manter a banda em atividade.

Hodges foi membro da banda do programa televisivo “Ted Steele Show”, gravou alguns álbuns como líder para a Verve e, a convite de Norman Granz, integrou a caravana Jazz at the Philharmonic, permitindo-lhe que convivesse e tocasse com outras estrelas do jazz, como Charlie Parker, Benny Carter, Roy Eldridge, Ben Webster, Charlie Shavers, Kai Winding, Oscar Peterson, Ray Brown, Barney Kessel, Dizzy Gillespie e Louie Bellson.

Johnny retornou à orquestra de Ellington em 1955 e manteve o status de principal estrela da banda, conseguindo ofuscar até mesmo pesos-pesados como Paul Gonsalves, Ray Nance, Cat Anderson, Russell Procope, Juan Tizol e seu velho amigo Harry Carney. No ano seguinte, marcou presença na aclamada apresentação da big band no Newport Jazz Festival. Paralelamente, continuou a gravar discos como líder, para selos como RCA-Victor, Clef Records, Verve, Atlantic e Impulse.

Um dos momentos mais sublimes da discografia de Hodges é o formidável “Gerry Mulligan Meets Johnny Hodges”, gravado em Los Angeles, no dia 17 de novembro de 1959, para a Verve. Além de Mulligan (sax barítono) e Hodges (sax alto), participaram da sessão nomes de primeira linha do West Coast Jazz, como o pianista Claude Williamson, o contrabaixista Buddy Clark e o baterista Mel Lewis.

A abertura fica por conta de “Bunny”, tema que Mulligan compôs em homenagem a Hodges. É uma melodia assobiável, simples e contagiante, com nítida influência do swing, mas que também agrega elementos harmônicos do bebop, sobretudo durante as intervenções do baritonista, e do blues, graças à levada pulsante de Clark. O som que Hodges extrai do sax alto é límpido, cristalino, sóbrio, não dando espaço para malabarismos ou firulas estéreis e elaborando passagens dotadas de uma elegância natural, que soam como se tivessem sido concebidas de maneira absolutamente intuitiva.

Também de autoria de Mulligan, a balada “What’s the Rush” vem a seguir. Delicada e com uma atmosfera ellingtoniana, ela é um veículo mais que adequado para que Hodges exiba a sua proverbial sensibilidade, por meio de frases lânguidas, entrecortadas por um vibrato repleto de lirismo. O piano intimista de Williamson e a percussão mínima de Lewis ajudam a tornar a audição uma experiência comovente. Reza a lenda que Mulligan preferiu não participar da sessão e ficou sentado nos fundos do estúdio, apenas assistindo à performance inebriante de Johnny.

O blues “Black Beat” é uma composição de Hodges, crispada e com uma batida infecciosa. O altoísta imprime linhas melódicas rápidas e serpenteantes, sem se descuidar do tom evocativo que torna o blues um estilo tão confessional. O suporte rítmico é vigoroso, com destaque para os fulgurantes acordes de Williamson. A abordagem de Mulligan é mais introspectiva e suas frases são mais longas e diretas, fazendo um empolgante contraponto à velocidade do parceiro.

Mais um blues da lavra de Hodges, “What It's All About” tem um andamento cadenciado, em tempo médio, e uma batida infecciosa. A marcação feita por Clark e Lewis é impecável, destacando-se o espetacular trabalho do segundo com os pratos. Mulligan possui um sopro potente, ressonante, profundo, e trafega pelos registros mais graves do sax barítono com enorme autoridade. A intimidade de Hodges com o blues é saudada como uma de suas mais notáveis características e aqui as suas qualidades emergem de maneira impressionante, indo até o âmago do blues com uma elevada carga dramática.

A eletrizante “18 Carrots (For Rabbit)” é mais uma homenagem de Mulligan ao distinto parceiro. Executada em velocidade supersônica, é a mais impregnada de elementos do bebop, não apenas do ponto de vista melódico como, sobretudo, harmônico. O entusiasmado Williamson incorpora o espírito de Bud Powell, com um ataque vigoroso e certeiro. Lewis praticamente destrói sua bateria, numa formidável exibição de técnica e ferocidade. Os lancinantes agudos de Hodges e seus duelos com Mulligan são momentos de indiscutível maestria.

Para encerrar, mais uma balada de refinados contornos ellingtonianos, “Shady Side”. Atuando em uníssono, os líderes mostram sonoridades distintas, mas complementares. Nos solos, Hodges é mais incisivo e Mulligan mais melancólico. A urdidura melódica concebida pela sessão rítmica, em especial por Williamson, é inebriante, guardando alguma semelhança com os belíssimos temas românticos de Charlie Mingus, especialmente em “Open Letter to the Duke” e “Goodbye Pork Pie Hat”.

Um disco que dignifica as biografias de todos os envolvidos e que dá uma ótima idéia do gigantesco talento de Hodges, mostrando-o como criador de uma arte atemporal, que mereceu da revista Downbeat a seguinte avaliação: “é uma música casual e sem ostentação, que incorpora, de modo bastante apropriado, elementos ligados ao passado, ao presente e ao futuro do jazz”.

Aliás, no ótimo texto de apresentação, escrito por Nat Hentoff, o crítico reproduz a opinião de Mulligan sobre o seu parceiro na empreitada: “A exigência diária para que se faça algo ‘novo’ todos os dias é uma maneira significativamente imatura de encarar a vida e a arte. As pessoas vivem querendo obrigar os músicos, e outros artistas, a sempre inventar algo ‘novo’ e não se dão conta de que isso é uma forma de cercear a criatividade. Esse tipo de pressão revela algo sobre a nossa própria cultura: se algumas pessoas não conseguem compreender o quão maduro e individual é o som de Hodges, eu lamento bastante por elas”.

Além da participação na orquestra de Ellington, Hodges era um parceiro habitual do maestro em seus pequenos grupos, chegando mesmo a dividir com este os créditos em alguns discos, como os formidáveis “Side by Side” e “Back to Back: Duke Ellington and Johnny Hodges Play the Blues”, ambos para a Verve. Em 1962 gravou, também para a Verve, o álbum “Johnny Hodges with Billy Strayhorn and the Orchestra”, dividindo a liderança com o amigo e companheiro de banda Billy Strayhorn.

Em 1961, ele foi um dos destaques da vitoriosa excursão européia feita pelos “The Ellington Giants”, que reuniu alguns dos maiores nomes que já passaram pela big band do maestro. Durante a década de 60, ele excursionou com jazzistas de renome, como o organista Wild Bill Davison, o saxofonista Ben Webster e o pianista Earl Hines, com quem gravou “Stride Right” (Verve, 1966). Outro ponto alto da sua discografia é “Everybody Knows Johnny Hodges” (1965), lançado pela Impulse, com produção de Creed Taylor.

Johnny Hodges morreu no dia 11 de maio de 1970, de um infarto fulminante. Estava no consultório do seu dentista e, dizem as más línguas, teve o ataque cardíaco após receber a conta. A morte o abateu no meio das gravações da “New Orleans Suite”, ambicioso projeto orquestral de autoria de Duke Ellington. Ao saber de sua morte, o maestro comentou: “Johnny é insubstituível. Com a sua partida, o som da nossa orquestra jamais será o mesmo. Sou feliz e grato a Deus por haver tido o privilégio de tê-lo ao meu lado, noite após noite, por quase quarenta anos”.

Uma semana antes de falecer, Hodges havia deixado em êxtase a platéia que lotou o Imperial Room, em Toronto, no Canadá. Foi a sua última apresentação. Em reconhecimento à sua trajetória e à sua gigantesca contribuição para o jazz, a revista Downbeat incluiu o nome do saxofonista em seu Hall of Fame, ainda em 1970, em votação da crítica.

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terça-feira, 10 de julho de 2012

OS PRIMÓRDIOS DA BOSSA NOVA E O LEGADO DE JOHNNY ALF (um texto de José Domingos Raffaelli)




Como todas as artes, a bossa nova tem uma pré-história cujos principais precursores nos anos 40 foram o violonista Garoto, tocando harmonizações alteradas e dissonantes, o pianista Dick Farney e o compositor Custódio Mesquita, cujos maiores sucessos são dois fox-trots ao melhor estilo americano ("Mulher" e "Nada Além"). O conjunto Os Cariocas inovou a forma de cantar dos conjuntos vocais nacionais com harmonizações ousadas assimiladas dos grupos vocais americanos.

Os anos 50 revelaram músicos e compositores influenciados por jazz que introduziram novidades melódico-harmônicas, principalmente o pioneiro pianista e compositor Johnny Alf. Suas atuações no bar do Hotel Plaza, no Rio de Janeiro, em 1953/54, atraiam a atenção dos jovens músicos e cantores que, cativados por suas inovações, iam ouvi-lo todas as noites, entre eles João Gilberto, Candinho (violão), Luiz Bonfá (violão e compositor), Aurino Ferreira (saxofonista), João Donato (pianista, acordeonista e compositor), Bebeto Castilho e Manuel Gusmão (baixistas), Sylvia Telles, Claudete Soares e Alaíde Costa (cantoras), Luiz Eça (pianista) e Lucio Alves (cantor).

A influência de Alf mudou os rumos da música brasileira com suas composições rebuscadas, harmonicamente ousadas e sentido melódico de beleza invulgar. Foi um passo gigantesco para a renovação da linguagem que germinou a semente da bossa nova. Alf era o centro das atenções dos jovens. Um deles, o pianista-compositor Antonio Carlos Jobim, que seria outro artífice da bossa nova, fascinado pelas harmonizações de Alf, aprendeu com ele os segredos da sua concepção harmônica.

Com a gravação do clássico "Rapaz de Bem", que mudou a concepção melódico-harmônica da música popular brasileira, Alf apontava os rumos a seguir, sendo considerado o pai espiritual da bossa nova. Algumas das suas obras-primas, além de "Rapaz de Bem", são "Ilusão a Toa", "Céu e Mar", "Fim de Semana em Eldorado", Disa (outra maravilha que ficou esquecida na poeira do tempo), "O Que é Amar" e a seminal "Eu e a Brisa", provavelmente a maior de todas suas geniais obras.

Outra influência decisiva para o nascimento da bossa nova foi o disco "Brazilliance", do violonista Laurindo Almeida e o saxofonista Bud Shank, realizando uma inédita fusão de jazz com música brasileira, causando sensação pelas audaciosas improvisações de Shank, provando ser possível improvisar sobre temas brasileiros, algo inimaginável na época. Na época, um grande saxofonista brasileiro declarou solenemente "ser impossível improvisar sobre música brasileira"...

O violonista e compositor Luiz Bonfá deu sua contribuição ganhando fama internacional com "Manhã de Carnaval", carro-chefe da trilha do filme Orfeu do Carnaval, e "Samba de Orfeu". Outras obras suas de realce são "Menina Flor", "The Gentle Rain", "Saudade Vem Correndo" e "Mania de Maria".

Nos idos de 1956/57, João Gilberto ouvia exaustivamente o disco “Chet Baker Sings” numa cabine da lendária Lojas Murray. Impressionado pelo estilo coloquial de Baker, João mudou radicalmente sua maneira de cantar, deixando de imitar Orlando Silva para adotar o estilo vocal de Baker, transformando-se no maior ícone da bossa nova ao lado de Antonio Carlos Jobim. Sua batida de violão originou a característica rítmica essencial da bossa nova. Mundialmente famoso, João Gilberto continua cantando com grande sucesso em todo o mundo. 

Outro notável talento foi João Donato, cujo estilo original influenciado pelo jazz é evidenciado em "Minha Saudade", "Silk Stop", "Até Quem Sabe" e "A Rã". Ele radicou-se em Los Angeles em 1959, onde morou até 1973, gravando e tocando com músicos de jazz e latinos. Donato continua em franca atividade, gravando e bastante requisitado para turnês nos Estados Unidos, Europa e Japão. 

Historicamente, em 1958 coube à cantora Elizeth Cardoso gravar o primeiro disco de bossa nova: "Canção do Amor Demais", com participação de João Gilberto no violão. A essa altura, começava a frutífera parceria de Antonio Carlos Jobim com Vinicius de Morais, artífice das letras de inúmeras canções conhecidas em todo o mundo.

No mesmo ano, um grupo de jovens empolgados pelas tendências da nova música reunia-se na casa da cantora Nara Leão para explorarem novo repertório. Alguns participantes desses encontros foram Roberto Menescal, Ronaldo Boscoli, Carlos Lyra, Chico Feitosa, Durval Ferreira e Oscar Castro Neves, que muito contribuíram para o sucesso do movimento.

Paralelamente, a música fervilhava nos quatro clubes do lendário Beco das Garrafas, réplica carioca da Rua 52, de New York. Todas as noites alguém trazia uma nova composição, uma nova idéia, um novo arranjo. Naqueles clubes apresentaram-se os pianistas Luiz Carlos Vinhas, Luiz Eça, Sérgio Mendes, Toninho Oliveira, Dom Salvador e Tenório Junior; violonistas Baden Powell, Neco, Rosinha de Valença, Waltel Branco e Oscar Castro Neves; cantoras Claudete Soares, Leny Andrade, Alaíde Costa e Sylvia Telles; trombonistas Raul de Souza e Edson Maciel; baixistas Sérgio Barrozo, Tião Neto e Manuel Gusmão; saxofonistas Jorge Ferreira da Silva, J. T. Meirelles e Aurino Ferreira; bateristas Edison Machado, Victor Manga, Milton Banana e Dom Um Romão; e gaitista Maurício Einhorn.

Os músicos começaram a desenvolver o samba-jazz inspirados nas improvisações do disco "Brazilliance", de Laurindo Almeida e Bud Shank, despontando os conjuntos Tamba Trio, Bossa Três, Salvador Trio, Trio 3-D e Rio 65 Trio. A juventude brasileira foi arrebatada pela bossa nova com o disco "Chega de Saudade", de João Gilberto, definindo as bases do novo idioma com inovações na melodia, harmonia e no ritmo, sendo cultuado por músicos, cantores e ouvintes.

Pouco a pouco, a nova música começou a ganhar fama internacional a partir de 1959, com quatro acontecimentos decisivos para seu sucesso no exterior. Primeiro, o guitarrista Charlie Byrd fez uma turnê brasileira e, encantado com o que ouviu, na volta aos USA gravou vários discos com músicas brasileiras. Segundo, quando vieram ao Brasil o conjunto American Jazz Festival e o quinteto do trompetista Dizzy Gillespie, em 1961; ao regressarem, Gillespie, Lalo Schifrin (piano), Zoot Sims e Coleman Hawkins (sax), Herbie Mann (flauta) e Curtis Fuller (trombone) gravaram discos de bossa nova. Terceiro, em 1962, Charlie Byrd e o saxofonista Stan Getz gravaram o LP "Jazz Samba", e "Desafinado" tornou-se um sucesso monumental da noite para o dia. Sua repercussão originou a organização de um concerto de bossa nova no Carnegie Hall com músicos brasileiros, abrindo um mercado internacional de trabalho para os artistas nacionais. 

No ano seguinte, Stan Getz gravou com João Gilberto e Antonio Carlos Jobim o disco que transformou "Garota de Ipanema" na marca registrada de Jobim e da bossa nova, no qual Astrud Gilberto estreou como cantora. A essa altura, Jobim era o grande nome da bossa nova; mundialmente famoso, seu prestígio era cada vez maior e suas composições eram sucessos retumbantes em quase todos os países do planeta.

A bossa nova conquistou o público com suas belas melodias, harmonias sofisticadas e seu ritmo sutil e original. Entre incontáveis sucessos, ficaram para a posteridade "Chega de Saudade", "Desafinado", "Garota de Ipanema", "Samba de Uma Nota Só", "Meditação", "Corcovado", "O Amor em Paz", "Samba do Avião", "Inútil Paisagem", "Dindi", "Triste", "A Felicidade", "Lígia", "Vivo Sonhando", "Se Todos Fossem Iguais a Você", "Só Danço Samba" e "Insensatez" (Jobim); "Influência do Jazz", "Primavera", "Minha Namorada", "Maria Ninguém", "Se É Tarde Me Perdoa", "Lobo Bobo" e "Você e Eu" (Carlos Lyra), "Barquinho", "Rio", "Você" e "Vagamente" (Roberto Menescal), "Batida Diferente", "Chuva" e "Estamos Aí" (Maurício Einhorn)

Com o sucesso do rock e dos Beatles, a bossa nova deixou de ser a música da juventude brasileira, embora continuasse prestigiada no exterior até hoje. Na geração pós-bossa nova destacaram-se Edu Lobo, Chico Buarque, Djavan, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Marcos Valle, mas somente este aderiu ao estilo.  

Após longo período de estagnação, nas últimas duas décadas houve um renascimento da bossa nova no Brasil com shows, festivais, gravações e reedições de discos daquele período que continua sendo o mais criativo da música popular brasileira de todos os tempos.


A BOSSA NOVA

A bossa nova foi o grande divisor de águas da nossa música popular, gerando a maior revolução melódico-rítmico-harmônica de todos os tempos que inaugurou a era moderna da MPB. A bossa nova foi para a música brasileira o equivalente do bebop para o jazz nos anos 40, e o lendário Beco das Garrafas representou o que foi a Rua 52, em Nova York. Foi nos quatro clubes daquele pequeno quarteirão de Copacabana que parte dos futuros astros da bossa nova iniciaram suas carreiras.  

Freqüentei assiduamente o Beco das Garrafas, que fervilhava todas as noites com a pulsação dos novos rumos que tomava nossa música, sendo testemunha ocular e auditiva daquele movimento desde seu nascedouro, cuja beleza melódica conquistou ouvintes em  todo o mundo, abrindo um mercado internacional de trabalho para nossos músicos, compositores e cantores. Naqueles anos dourados, entre 1958 e 1963, a bossa nova foi a música da nossa juventude, que se rendeu aos encantos das suas melodias e versos poético-românticos.

Muito foi escrito sobre a bossa nova, embora a grande maioria jamais tenha pisado no Beco das Garrafas ou tenha freqüentado seus quatro clubes, limitando-se a transcrever entrevistas com opiniões de terceiros, nem sempre confiáveis. Ao festejar seu cinqüentenário, a bossa nova conquistou uma enorme audiência em todos os países do mundo, sendo o maior e melhor artigo de exportação do Brasil.

JOHNNY ALF

A música popular brasileira teve uma perda irreparável com o desaparecimento de Johnny Alf (Alfredo José da Silva), dia 04 deste mês, aos 80 anos. Alf foi o pai espiritual da bossa nova, cujas sementes ele plantou na Cantina do César, em 1950/51 e em 1953/54 tocando no bar do Hotel Plaza, no Rio de Janeiro. Todas as noites iam ouvi-lo Luiz Eça, Sylvinha Telles, Neco, Bebeto, Oscar Castro Neves, Edson Maciel, Edison Machado, Baden Powell, Cipó, Aurino Ferreira, Carlos Lyra, Mauricio Einhorn, Pedro Paulo, Tião Neto, Manuel Gusmão, Mario Castro Neves, Oscar Castro Neves, Dom Um Romão, Marcos Szpillman, Jorginho Ferreira da Silva, João Luiz Maciel, Paulo Moura, Duba, Alfredo de Paula, Alaíde Costa, Ed Lincoln, Tom Jobim e tantos outros. Fascinado pelas harmonizações avançadas de Alf, Jobim (que era pianista da noite do Clube da Chave), pediu que lhe desse aulas para aprender a harmonizar de forma moderna.

Alf era muito educado, atencioso e tratava todos muito bem. Eu o conheci num sebo de discos, em 1949. Estávamos lado a lado na seção de música americana e depois de algum tempo começamos a conversar enquanto olhávamos os discos. Depois de comprar o que queríamos, saímos da loja conversando e paramos para tomar um café. Quando nos despedimos, ele perguntou se eu queria ir ao Sinatra-Farney Fã Clube, do qual era sócio.

Fui e lá conheci muita gente jovem e vários deles tornaram-se meus amigos. Depois de alguns dias, encontrei na rua o apresentador de rádio Cesar de Alencar, que era muito popular. Ele disse que ia inaugurar uma casa noturna (chamou-se Cantina do César) e precisava de um bom pianista que cantasse em português e inglês. Na mesma hora disse-lhe que conhecia o melhor de todos: Johnny Alf. Surpreso por não conhecer Alf, pediu que falasse com ele sobre o trabalho. Não deu outra: Johnny foi lá e estreou logo depois. Foi um grande sucesso. Logo espalhou-se a notícia que um novo pianista na Cantina do César era um fenômeno, tocava harmonias audaciosas como ninguém no Brasil.

Assim começou a carreira profissional dele. Infelizmente, ele nunca teve o reconhecimento que deveria receber, apesar dos verdadeiros conhecedores sempre o admirarem e prestigiarem. Johnny Alf foi um gênio, um músico à frente da sua época que deixou uma obra fenomenal, valiosa e repleta de canções admiráveis, verdadeiras obras-primas que chamavam a atenção dos músicos e cantores e permanecerão para sempre na história da MPB. Para mim, Johnny Alf foi o maior compositor brasileiro de todos os tempos. Sem ele não existiria a bossa nova. JOHNNY ALF, "All I can add is There'll Never Be Another You".


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PS.: O texto do mestre Raffaelli foi escrito em março de 2010, pouco tempo depois da morte de Johnny Alf, ocorrida no dia 04 daquele mês.

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