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quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O DEMOLIDOR


Ainda na infância Matt Murdock perdeu a visão em um acidente radioativo. Em compensação, seus outros sentidos se tornaram extremamente aguçados. Ele consegue distinguir, pelo olfato, uma pessoa no meio de uma multidão e ouvir, a quilômetros de distância, um pedido de socorro. E, apesar de cego, é capaz de caminhar com segurança pelas caóticas ruas de Nova Iorque, graças a uma espécie de radar semelhante ao dos morcegos.

Alguns anos depois do acidente, seu pai, o boxeador decadente Jack Murdock, se recusou a entregar uma luta e frustrou os planos da Máfia de faturar uma fortuna na bolsa de apostas. A insubordinação lhe custou a vida e, para se vingar, Matt se valeu dos seus sentidos hiperdesenvolvidos. Adotou o nome de Demolidor e passou a combater o crime organizado da cidade, em especial a organização comandada pelo sanguinário Wilson Fisk, o Rei do Crime. Mas o seu maior inimigo é um assassino de aluguel psicótico e violento, o Mercenário.

Para quem não sabe, o Demolidor é um dos mais queridos personagens das histórias em quadrinhos. Criado por Stan Lee na década de 60, ele viveu o ápice da popularidade no início dos anos 80, quando passou a ser roteirizado e desenhado pelo então quase iniciante Frank Miller. Pelas mãos do revolucionário criador de Sin City, o Demolidor passou a ser um personagem de primeiríssima linha da Marvel Comics, rivalizando com super-heróis badalados como o Homem-Aranha e os X-Men.

Graças ao estilo cinematográfico construído por Miller e por sua reconstituição realista do submundo de Nova Iorque, o Demolidor conquistou o público adulto. No universo sombrio em que Murdock habita, convivem lado a lado prostitutas, assassinos, cafetões, mafiosos, psicopatas, políticos corruptos, mendigos, viciados e toda a sorte de deserdados do sonho americano. Os dilemas éticos e morais do herói são bastante verossímeis e, como qualquer ser humano, ele sente dor, ódio, medo, amor.

Por conta de seu trabalho com o personagem, Miller foi contratado, a peso de ouro, pela DC Comics, a fim de dar uma roupagem contemporânea a outro personagem icônico do mundo dos quadrinhos, o Batman. O resultado foi a mini-série “O Cavaleiro das Trevas”, que vendeu mais de cinco milhões de exemplares só nos Estados Unidos e inspirou várias versões do Homem-Morcego para o cinema.

E já que se está falando do super-herói Demolidor, nada melhor que falar de um homônimo seu, só que ligado ao jazz: Charles Anthony “Buster” Williams Jr. nasceu no dia 17 de abril de 1942, na cidade de Camden, Nova Jérsei, em uma família de cinco irmãos. A mãe, Gladys, era costureira e seu pai, Charles Sênior, tinha vários empregos simultâneos, a fim de poder sustentar a numerosa prole. À noite, seu passatempo era tocar jazz com os amigos, em clubes da cidade.

Foi com o pai, contrabaixista amador, que Charles Jr. aprendeu a manejar o instrumento. Ele recorda: “Meu pai era um ótimo músico e preparava lições para mim. À noite, após o jantar, eu praticava e ele ouvia com atenção o que eu estava tocando. Ele era um grande fã de Slam Stewart e de Oscar Pettiford, e sempre procurava tocar naquele estilo. Eu não tinha muita escolha, ou eu tocava certo ou era obrigado a ouvir à exaustão os trechos que havia errado. Lá em casa, ao invés de dois automóveis, tínhamos dois contrabaixos”.

Quando tinha apenas 17 anos, em 1959, o jovem Williams, já então apelidado de Buster (Demolidor) por causa da sua pegada vigorosa, começou a atuar profissionalmente no quarteto do saxofonista Jimmy Heath, que contava com os experientes Sam Dockery no piano e Specs Wright na bateria. Concluído o ensino médio na Camden High School em 1960, naquele mesmo ano o jovem baixista foi contratado por Gene Ammons e Sonny Stitt, que lideravam então um quinteto dos mais festejados por público e crítica.

Por conta do novo emprego, Buster foi obrigado a se mudar para Kansas City. Durante cerca de um ano, ele permaneceu com a dupla de saxofonistas, que era atração fixa no clube do Douglass Hotel, mas um fato desagradável acabou determinando o fim da parceria. Profundamente mergulhado no vício em heroína, certa noite Ammons desapareceu da cidade, levando consigo todo o pagamento da banda. Felizmente, o baixista conseguiu um trabalho de uma semana com o cantor Al Hibbler, e com o dinheiro recebido, pôde retornar à cidade natal.

De volta ao lar, Buster logo se dedicou ao estudo de composição, harmonia e teoria musical, no Combs College of Music, na vizinha cidade de Filadélfia. Pouco depois, em 1961, muda-se para Wilmington, Delaware, onde vai integrar o trio do pianista Gerald Price. De passagem pela cidade, a cantora Dakota Staton assistiu a uma apresentação do trio e gostou tanto do que ouviu que contratou Price e seus homens para acompanhá-la.

A parceria com Staton durou cerca de seis meses, mas serviu para tornar seu nome conhecido no meio musical. Em 1962, Buster se fixa em Nova Iorque, a fim de trabalhar com Betty Carter. Pouco depois, ingressa na banda de Sarah Vaughan, com quem faz sua primeira excursão à Europa. Na França, ele conhece Miles Davis, cujo quinteto (integrado por Ron Carter, Herbie Hancock, George Coleman e Tony Williams) se apresentava naquele país.

Buster costumava freqüentar um pequeno restaurante do Harlem, chamado Cozy’s, e ali conheceu Lee Morgan e Hank Mobley, com quem costumava fazer algumas gigs. Ele relembra: “O Harlem era um lugar maravilhoso naquela época Eu morava lá e as pessoas adoravam se vestir bem. Mesmo que você estivesse usando uma calça jeans, ela tinha que ter um vinco. E havia um monte de clubes, como o Sugar Ray’s, Small’s Paradise, Club Baron e o Red Rooster. Uma vez toquei com a Nancy Wilson no Apollo e eu tive que carregar o contrabaixo do camarim até o topo do palco”.

Em 1964 Buster vai trabalhar com outra cantora, Nancy Wilson, o que o obriga a se mudar para Los Angeles. Foi uma parceria das mais frutíferas e que rendeu cerca de meia dúzia de álbuns. Ao mesmo tempo, Buster também fazia parte dos Jazz Crusaders e, como freelancer, participou de gravações sob a liderança de Miles Davis, Bobby Hutcherson, Harold Land e Kenny Dorham.

Como ocorreu com grande parte dos músicos de jazz estabelecidos na Califórnia, Williams também atuou com freqüência em estúdios de cinema e TV, com destaque para sua participação na trilha sonora do sucesso “MacKenna’s Gold”, produção de 1968, estrelada por Gregory Peck e Omar Sharif, e dirigida pelo especialista em filmes de ação J. Lee Thompson.

O ambiente californiano, embora bastante compensador do ponto de vista financeiro, não saciava o ímpeto de Buster por novos desafios e o baixista decidiu deixar a banda de Nancy, em outubro de 1968, para tentar a vida em Nova Iorque. Não demorou muito e ele já estava completamente ambientado na nova cidade, tocando com os respeitáveis Art Blakely, Herbie Mann e Mary Lou Williams.

Seu parceiro mais regular nesse período foi o pianista Herbie Hancock, que na época buscava uma nova linguagem, unindo elementos de rock, pop, jazz e música eletrônica. De 1969 a 1972 o pianista liderou grupos muito bem sucedidos comercialmente e ali pontuaram feras como Johnny Coles, Garnet Brown, Joe Henderson, Albert “Tootie” Heath, Benny Maupin, Billy Hart, Eddie Henderson, Julian Priester e outros.

Na década de 70 o nome de Buster se consolida como um dos mais requisitados acompanhantes do mercado. Seu nome consta dos créditos de discos de gente como Grant Green, Denny Zeitlin, Abdullah Ibrahim, Bennie Golson, Branford Marsalis, Carmen McRae, Cecil Payne, Cedar Walton, Art Farmer, Charles McPherson, Woody Shaw, Chet Baker, Art Blakey, Chick Corea, Freddie Hubbard, David “Fathead” Newman, Dexter Gordon, Albert Daily, Emily Remler, Betty Carter, Larry Coryell, Lee Konitz, Richard Groove Holmes, Harold Mabern, Charlie Rouse, Houston Person, James Brown, Kenny Barron, Rahsaan Roland Kirk, Stanley Cowell, Illinois Jacquet, Shirley Horn, Red Rodney, Roy Ayers, Billy Taylor, Sonny Rollins, Count Basie, Errol Garner, Frank Morgan, Terence Blanchard, Steve Turre, Walter Davis Jr., Cláudio Roditi, Jimmy Rowles, McCoy Tyner, entre outros.

Integrou o “Great Jazz Trio”, sob a liderança de Hank Jones, em uma formação que incluía o baterista Tony Williams. Outra parceria bastante longeva foi com o contrabaixista Ron Carter, nos álbuns em que este toca violoncelo ou contrabaixo piccolo. Os dois tocaram com a London Symphony Orchestra na trilha sonora do filme “Les Choix Des Armes”, de 1981, composta por Philippe Sarde. No filme, Yves Montand e Simone Signoret contracenam, sob a direção de Alain Corneau.

Ainda no início da década de 80, Buster montou um quarteto com Herbie Hancock, Tony Williams e um jovem trompetista chamado Wynton Marsalis, que havia se destacado nos Jazz Messengers. O quarteto sofreria algumas modificações, com Tony Williams dando lugar a Al Foster e Marsalis sendo substituído pelo saxofonista Michael Brecker (no futuro, Branford Marsalis e Greg Osby se revezariam no saxofone) e esse grupo se manteve em esporádica atividade até 1995.

Ainda nos anos 80, Buster participou de dois projetos de fôlego. Um deles foi o “The Timeless Allstars”, uma banda espetacular que reunia os talentos de Cedar Walton no piano, Billy Higgins na bateria, Curtis Fuller no trombone, Harold Land no sax tenor e Bobby Hutcherson no vibrafone. Outro supergrupo do qual fez parte foi o “Sphere”, onde atuou na companhia do pianista Kenny Barron, do baterista Ben Riley e do saxofonista Charles Rouse.

Criado com o intuito de manter em evidência a obra de Thelonious Monk, o quarteto foi um dos mais estimulantes pequenos grupos da década de oitenta e deixou alguns ótimos álbuns. O primeiro deles, “Four In One” (lançado pela Atlantic e com um repertório composto exclusivamente por temas de autoria de Monk), foi, curiosamente, gravado no dia em que Thelonious faleceu, 17 de fevereiro de 1982, sendo que os músicos entraram no estúdio sem ter conhecimento desse fato.

No segundo disco, “Flight Path”, de 1983, o quarteto havia amadurecido bastante, incluindo temas dos seus integrantes no repertório, e a interação entre os quatro é absoluta. O disco foi gravado nos estúdios de Rudy Van Gelder e, como o anterior, também foi lançado pela Atlantic. A atuação de Williams, que consegue se destacar em meio a tantos craques, é simplesmente arrebatadora.

Para abrir o álbum, a faixa escolhida foi a deliciosa “If I Should Lose You”, de Leo Robin e Ralph Rainger. O sopro cálido de Rouse, fértil de texturas harmônicas, passeia por timbres e nuances sonoros com a mais absoluta desenvoltura. Dono de um senso de tempo infalível no acompanhamento, Williams também tem espaço para executar seus solos e o faz com precisão e autoridade. Outro ponto alto desta faixa é o piano minimalista de Walton, que escolhe as notas com a precisão de um cirurgião e a elegância de um ourives.

O saxofonista assina “Punpkin's Delight”, um tema de cores expressionistas, bastante inspirado nas melodias tortuosas de Monk. Com uma base impecavelmente sólida, feita por Buster e Riley, Walton e Rouse podem realizar vôos de alta complexidade técnica. Piano e saxofone dialogam com um elevado grau de entendimento e criam improvisos sofisticados.

Embora tenha surgido como um tributo a Monk, neste disco o quarteto interpreta apenas uma composição do excêntrico pianista, a elíptica “Played Twice”. Uma aura de mistério cerca a bela introdução, a cargo de Riley e Rouse. Depois de agregados todos os instrumentos, o resultado é um bebop expressionista, bastante surpreendente do ponto de vista melódico. O solo de Williams, profundo e ressonante, é tecnicamente desafiador e extremamente vibrante no aspecto rítmico.

A balada “Christiana” foi composta por Buster e é dedicada a uma sobrinha do baixista. O quarteto cria um clima intimista, onde delicadeza e lirismo caminham lado a lado. O discreto acento afro-cubano acrescenta uma boa dose de charme ao tema, que tem nas iluminadas atuações de Rouse e Walton seus pontos culminantes. As notas alongadas de Williams e sua notável precisão harmônica dão-lhe densidade e coesão.

“El Sueño” e “Flight Path” são temas de autoria de Kenny Barron. No primeiro, a maior referência é a bossa nova, com uma visível atmosfera jobiniana. A sonoridade de Rouse se mostra sutilmente calorosa e mantém um ótimo diálogo com o piano. No segundo, ouve-se um hard bop musculoso, direto e cortante, com algumas passagens que evocam o Coltrane de “Giant Steps” ou “Mr. PC”. Em ambas as faixas, o contrabaixo de Buster transborda virilidade e robustez. Se há um disco dos anos 80, período tido como nebuloso para o jazz acústico, que merece o adjetivo indispensável, certamente é este!

O “Sphere” se manteria em atividade regular até novembro de 1988, quando se dissolveu em virtude da morte de Rouse. O último álbum da banda foi “Bird’s Songs” (Verve, 1987), um tributo a Charlie Parker muito bem recebido pela crítica especializada. O quarteto ensaiou um retorno aos palcos em 1997, com o talentoso Gary Bartz no saxofone, fazendo apresentações em Nova Iorque e na Europa e gravando, ainda naquele ano, um álbum homônimo para a Verve.

Em 1989, Buster voltou a se reunir a Herbie Hancock, desta feita para gravar o ótimo “Something More”, para o selo In & Out Records. Agora na liderança, o baixista recrutou um time de peso para secundá-lo: o saxofonista Wayne Shorter, o baterista Al Foster e a revelação japonesa do trompete, Shunzo Ohno, que emigrou para os Estados Unidos com apenas 15 anos e tocou na orquestra do maestro Gil Evans.

Embora tenha gravado alguns discos em seu próprio nome, Williams se manteve, durante mais de trinta anos, basicamente como um requisitado sideman. Nos anos 90, todavia, decidiu montar o próprio quarteto, com o qual tem gravado com freqüência e se apresentado em festivais pelo mundo. A seu lado, o vibrafonista Steve Nelson, o pianista Mulgrew Miller e o baterista Carl Allen e com essa formação o quarteto gravou o ótimo “Live At The Montreux Jazz Festival” (TCB, 1999).

Sobre essa nova fase da carreira Williams declarou: “Após 30 anos de trabalho continuo como sideman, eu decidi que era hora de tomar a iniciativa, de mergulhar ainda mais fundo. Resolvi que era o momento de tocar a minha música e expressar os meus próprios conceitos, por isso precisava de uma unidade musical bastante coesa. Pude fazer o meu aprendizado com grandes mestres e tenho muita honra em continuar uma verdadeira linhagem. É essa possibilidade, de usar o passado para ir adiante, que torna o jazz uma música tão rica”.

Williams não abandonou o trabalho no cinema e TV, tendo atuado na trilha sonora do seriado de TV “Twin Peaks”, dirigido pelo cineasta David Lynch. Ele apareceu em programas como o “Tonight Show”, apresentado por Johnny Carson, acompanhando o pianista Errol Garner e também atuou com a “Branford Marsalis Tonight Show Band”, banda de apoio do programa de Jay Leno. Outras aparições de Williams em programas de Tv incluem os seriados “Sesame Street”, “Bill Cosby Show”, “The Joan Rivers Show”, “Mike Douglas Show” e “The Andy Williams Show”.

Em 1991 ele recebeu da National Endowment for the Arts a incumbência de compor uma peça para quinteto, orquestra de cordas e coral. No mesmo ano, recebeu da New York Foundation for the Arts – NYFA o Fellowship Grant, uma bolsa de sete mil dólares que tem por objetivo estimular a produção artística, em especial a composição.

Seu disco “Griot Liberte” (High Note, 2004) foi recebido com entusiasmo pela crítica especializada e conta com as presenças de Stefon Harris (vibrafone), George Colligan (piano) e Lenny White (bateria). Esse grupo às vezes é enriquecido com a participação do saxofonista Steve Wilson, filho do bandleader e trompetista Gerald Wilson. O apreço de Buster pelo vibrafone é explicado na seguinte declaração: “É um instrumento que eu gosto imensamente e que dá à banda um som e um sabor diferentes. O vibrafone possui um certo romantismo e uma capacidade de se integrar de maneira muito harmoniosa aos outros instrumentos”.

Cidadão do mundo, Buster já se apresentou em dezenas de festivais, como os de Moscou, Montreux, Umbria, Porto, Roma, Curaçao, Istambul e Berlim. Seu último disco, “65 Roses” (Blueport, 2009) foi gravado ao vivo, durante um concerto em benefício de uma fundação que realiza pesquisas sobre a fibrose cística. Ao lado do contrabaixista, os formidáveis Kenny Barron (piano) e Lenny White (bateria).

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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

À SOMBRA DO VULCÃO


Quando Elvin Ray Jones apareceu no mundo do jazz, os adjetivos que costumavam ser usados para definir suas atuações, invariavelmente, eram eletrizante, vulcânico, explosivo. Todos, obviamente, bastante apropriados e os anos vindouros iriam cuidar de colocá-lo no panteão dos maiores e mais influentes bateristas de todas as épocas. Pertencente a uma das mais nobres linhagens do jazz, o irmão caçula dos luminares Thad e Hank Jones nasceu no dia 09 de setembro de 1927, em Pontiac, no Michigan.

A genética dos Jones logo o impeliu para a vida musical e ele começou a dedilhar o piano com cerca de sete anos de idade, influenciado pelo irmão Hank. O pai, Henry, era empregado da General Motors e fazia parte do coral da igreja freqüentada pela família. A mãe, Olivia, costumava ouvir em casa gravações de música gospel. O blues e o jazz não eram vistos com bons olhos em casa, pois o pai acreditava que essas músicas provinham do Tinhoso em pessoa.

Sem dar muita bola para a rigidez musical paterna, Elvin foi se apaixonando pelo jazz e na adolescência resolveu se dedicar integralmente à bateria, instrumento que o empolgava desde a tenra infância. Quando tinha apenas quatro anos, ele assistiu a um espetáculo circense e ficou assombrado com a agilidade do baterista. Seus primeiros ídolos foram os fenomenais Jo Jones e Shadow Wilson e, já como baterista, ele fez parte de diversas orquestras escolares. Em 1946, o jovem ingressa no serviço militar, permanecendo no exército até 1949.

Nas bandas da corporação, se destaca por seu estilo vibrante e poderoso, tanto que, ao retornar à vida civil, resolveu seguir a carreira musical. Sem dinheiro, pediu 25 dólares emprestados a uma irmã, para comprar a sua primeira bateria, mas o investimento compensou: em pouquíssimo tempo, Elvin já era chamado para assumir o seu primeiro emprego como músico profissional.

Seu primeiro empregador foi o saxofonista Billy Mitchell, fato que o obrigou a se mudar para a vizinha Detroit, em 1950. A banda de Mitchell era atração fixa do clube Bluebird Inn e o saxofonista ficou tão impressionado com a habilidade do baterista que não hesitou em contratar seus irmãos mais velhos, Thad e Hank, para integrarem a sua orquestra.

O estimulante cenário musical da cidade permitiu que, em pouco tempo, Elvin fosse um dos mais requisitados bateristas da Grand River Street, onde ficavam os clubes de jazz. Durante sua estada na Cidade dos Motores, participou de gigs com talentosos músicos locais como Tommy Flanagan, Pepper Adams, Kenny Burrell, Yusef Leteef e Curtis Fuller, além de estrelas de passagem pela cidade, como Charlie Parker, Sonny Stitt, Miles Davis e Wardell Gray.

Em 1955, Elvin viajou até Nova Iorque a fim de fazer um teste para ingressar na banda de Benny Goodman, mas não foi aprovado. O baterista não se abateu, pois dias após o exame recebeu um convite de Charles Mingus, para se juntar ao seu grupo. Logo, logo, estaria tocando com outros nomes de peso, como Art Farmer, Teddy Charles, Gil Evans, Bobby Jaspar, Frank Wess, Bud Powell, Harry “Sweets” Edison, Elmo Hope e Miles Davis. Seus parceiros mais constantes foram J. J. Johnson (cuja banda integrou de 1956 a 1957) e Donald Byrd (com quem permaneceu durante quase todo o ano de 1958).

Em novembro de 1957, Elvin participa de sua primeira gravação de impacto, acompanhando Sonny Rollins no seminal “A Night at the Village Vanguard” (Blue Note). Os dois, mais o baixista Wilbur Ware, criaram um disco que é considerado um verdadeiro clássico do jazz contemporâneo, no qual elaboram interpretações altamente instigantes de antigos standards como “I Can't Get Started” e “Old Devil Moon”, além de temas emblemáticos do bebop, como “Four” e “Woody'N You”. No disco, Donald Bailey e PeteLaRoca substituem, em algumas poucas faixas, Ware e Jones, respectivamente.

Em 1960, Jones teve a grande oportunidade de sua carreira, ao ser contratado para compor o mitológico quarteto de John Coltrane. Tendo ainda o impecável Jimmy Garrison no contrabaixo e o exuberante McCoy Tyner no piano, o grupo se converteria em um dos mais bem-sucedidos, inventivos e influentes da história do jazz, dando ao mundo gemas como “Coltrane Plays The Blues” (1960), “My Favorite Things” (1961) e a obra-prima “A Love Supreme” (1964), sendo os dois primeiros para a Atlantic e o último para a Impulse.

Mesmo fazendo parte de um dos mais disputados pequenos grupos dos anos 60, Jones nunca deixou de trabalhar como acompanhante, marcando presença em álbuns de nomes como Bob Brookmeyer, Freddie Hubbard, Jimmy Woods, Grant Green, Roland Kirk, Joe Henderson, Wayne Shorter, Larry Young, Barry Harris e muitos mais. Versátil e criativo, Elvin era capaz de atuar com igual desenvoltura ao lado de um dos artífices do free jazz sessentista, como Andrew Hill, ou de um bem-sucedido astro do soul jazz, como Stanley Turrentine.

A parceria com Coltrane exauriu-se em 1966. Jones partiu para outros projetos e Rashied Ali, que pilotava a segunda bateria do grupo desde o ano anterior, ficou sozinho no posto. Elvin trabalhou algum tempo na banda do venerando Earl Hines, participou, por algumas semanas, da orquestra de Duke Ellington, fez gravações sob a liderança de Ornette Coleman, Lee Konitz, Larry Coryell, Bill Evans e Chick Corea e ensaiou uma reunião com o antigo parceiro McCoy Tyner, no excelente “Real McCoy” (Blue Note, 1967).

Jones jamais poupou elogios ao antigo empregador e nunca escondeu a importância de Trane para o seu próprio desenvolvimento musical. Em uma entrevista, declarou: “John foi uma espécie de catalisador do meu estilo. A experiência de tocar com ele me ajudou a encontrar a minha própria maneira de tocar bateria e aguçou imensamente a minha musicalidade”.

Em 1968, o baterista se uniu ao saxofonista Joe Farrell e a seu ex-colega Jimmy Garrison, para montar um trio, o qual deixou um álbum registrado o elogiado “Puttin’ It Together” (Blue Note, 1968). Foi o seu primeiro disco pela mítica gravadora de Alfred Lion e até 1973, quando o contrato foi encerrado, ele lançaria mais sete álbuns, todos com ótima repercussão perante a crítica especializada. Outros discos bastante recomendados são os dois volumes de “Live at The Lighthouse”, ambos de 1973, e que apresentam os jovens saxofonistas Steve Grossman, então com 21 anos, e Dave Liebman, com 26.

Como líder, um álbum se destaca em sua respeitável discografia, espalhada por selos como Riverside, Atlantic, Evidence, Half Note, Denon, MPS, Blackhawk, Enja, Landmark, Storyville e a já mencionada Blue Note: o estupendo “Dear Mr. John C.”, uma emocionante homenagem ao então empregador John Coltrane. Gravado entre os dias 23 e 25 de fevereiro de 1965, o álbum conta com as presenças iluminadas de Sir Roland Hanna e Hank Jones se revezando ao piano (o primeiro toca nas três primeiras faixas e o segundo nas outras sete), Charlie Mariano nos saxes alto e tenor e Richard Davis no contrabaixo.

A faixa escolhida para abrir os trabalhos foi “Dear John C.”, de Bob Hammer e Bob Thiele. Profunda e intrigante, a composição serpenteia por entre as veredas do post-bop e do blues. Embora não negue a influência da linguagem coltraneana, ela foge do hermetismo que marcou os últimos anos do saxofonista e tem uma estrutura que lembra “Milestones”, de Miles Davis. O piano luminoso de Hanna e o surpreendente Mariano são os destaques mais evidentes, mas a percussão impetuosa do líder também merece ser ouvida com toda a atenção.

A climática “Ballade”, mais um tema de Bob Hammer, traz um Elvin contido, minimalista, que usa com parcimônia as escovas e pincela os pratos com a delicadeza de um beija-flor. Um dos mais belos temas do jazz, “Love Bird”, de autoria do antigo patrão Charles Mingus é uma pungente homenagem a Charlie Parker. A ousada versão do quarteto, que privilegia um andamento mais veloz, realça a intimidade de seus membros com a sintaxe bop, especialmente o esfuziante Mariano.

Imortalizada por Chet Baker, a doce “Everything Happens to Me”, foi composta por Matt Dennis e Thomas Adair e a atuação pungente de Mariano é antológica. Em seguida, é a vez da impressionista “Smoke Rings”, fruto da parceria entre Gene Gifford e Ned Washington. Davis tem uma sonoridade acolchoada, envolvente e profundamente melodiosa e é o grande destaque individual. A bordo do sax alto, Mariano transborda seu proverbial lirismo e exibe suas qualidades de excepcional executante de baladas. O mano Hank, sempre elegante, dá uma dimensão elegíaca a esse blues eloqüente e robusto.

“This Love of Mine” é uma balada em tempo médio, com tinturas de blues, composta por Frank Sinatra, em parceria com os obscuros Henry Sanicolav e Sol Parker. Mariano cria uma sonoridade áspera e crua, que remete aos sofrimentos amorosos que Ava Gardner impôs a “The Voice”. Os improvisos de Davis e sua sonoridade opulenta são empolgantes e o líder, que usa tanto as baquetas quanto as escovas, dá uma verdadeira aula de polirritmia e de domínio dos mistérios da percussão.

Verdadeiro clássico do bebop, “Anthropology” foi composta pelos gênios Charlie Parker e Dizzy Gillespie e a versão do quarteto é um dos pontos altos do disco. Em clima de jam session e executado com despojamento e espontaneidade, o tema apresenta ótimos solos por parte de Mariano e Hank, e uma intrincada construção rítmica por parte de Davis, que usa o arco com a habitual maestria, e Elvin. Outra balada, “Feeling Good” foi composta por Leslie Bricusse e Anthony Newley. Com uma melodia sofisticada e grande apelo sentimental, ela apresenta atuações memoráveis de Mariano e Hank, cujos diálogos são travados na linguagem universal do lirismo. Elvin, soberano, conduz a percussão com graça e delicadeza.

“Fantazm” é uma bela, porém pouco conhecida, composição de Duke Ellington, inspirada nos ritmos afro-caribenhos, em especial o calipso, mas com algumas pitadas de música oriental, graças à abordgem sibilante de Mariano. Elvin incorpora as nuances percussivas do lado de cá do Equador e sua execução é, a um só tempo, rica e sofisticada. O encerramento fica a cargo da animada “That Five-Four Bang”, terceiro tema de Hammer incluído no disco.

Trata-se de uma gravação extraordinária, que mereceu do crítico Michael G. Nastos, do site Allmusic, a seguinte análise: “Com a musicalidade em alto nível, ‘Dear John C.’ precisa ser revisitado pelas novas gerações de bateristas, estudantes e fãs de jazz em geral. Ouvindo esse álbum, descobrimos como se faz um ótimo trabalho em equipe, como valores musicais podem ser compartilhados em benefício da qualidade, como a dinâmica do grupo pode atingir novos parâmetros sem que isso prejudique a coesão do grupo. Parece que, ao longo dos anos, esse disco se tornou um pouco subestimado, o que é uma tremenda injustiça”.

O prestígio de Jones ante o mundo do jazz o conduziu, naturalmente, à liderança de seus próprios pequenos grupos, como os incensados “Jazz Machine” e “Oregon”. E por tais grupos passariam nomes de peso como os saxofonistas Pepper Adams, Sonny Fortune, George Coleman e Frank Foster, os trompetistas Lee Morgan e Terumasa Hino, os pianistas Kenny Barron, Dollar Brand, Kenny Kirkland e Tommy Flanagan, e os contrabaixistas Chip Jackson, Reggie Workman, George Mraz e Wilbur Little.

Como sideman, ele pode ser ouvido em gravações de malucos geniais, como Phineas Newborn (“Harlem Blues” e “Please, Send Me Someone To Love”, ambos de 1969 e gravados para a Contemporary), Stan Getz (“The Peacocks”, Columbia, 1975) e Art Peper (“The Complete Village Vanguard Sessions”, Contemporary, 1977). Também fez parte do “Summit Meeting”, um poderoso octeto liderado por Clark Terry e James Moody na segunda metade da década de 70.

A influência de Elvin extrapolou as fronteiras do jazz e alcançou o rock e a música pop. Sumidades como Ginger Baker (do Cream) e Mitch Mitchell (do trio de Jimmy Hendrix, que o chamava de “Meu Elvin Jones”) eram seus admiradores confessos e sempre que tinham oportunidade, faziam questão de ressaltar as suas qualidades. Não por acaso, a Life Magazine chegou a lhe atribuir o epíteto de “Maior Baterista do Mundo”. Seu nome consta de diversos Halls of Fame, como o da Percussive Arts Society, da Modern Drummer Magazine e da Downbeat Magazine.

A presença de Jones no universo da cultura pop está bem sintetizada por sua breve, porém marcante, participação no filme “Zachariah”, um western psicodélico de 1971, produzido e dirigido por George Englund. No filme, ele interpreta o pistoleiro Job Cain que, após matar um adversário em um duelo, dentro de um saloon, comemora o feito com um portentoso solo de bateria. O filme é estrelado por John Rubinstein e pelo jovem Don Johnson, em início de carreira, e conta com a participação da banda “Country Joe and the Fish”.

O baterista se notabilizou por ser um ótimo descobridor de novos talentos e alguns dos seus ex-comandados atualmente brilham no cenário jazzístico, como é o caso de Joshua Redman, Pat LaBarbera, Javon Jackson, Nicholas Payton e Delfeayo Marsalis. O hoje celebrado Ravi Coltrane, filho do ex-empregador John Coltrane e saxofonista como o pai, teve algumas de suas primeiras oportunidades profissionais nos grupos de Elvin.

Jones faleceu no dia 18 de maio de 2004, na cidade de Englewood, Nova Jérsei, em decorrência de uma parada cardíaca. O baterista já vinha apresentando problemas de saúde há algum tempo e nos últimos dois anos era obrigado a usar um balão de oxigênio durante as suas energéticas apresentações. Ele era figurinha fácil em festivais de jazz ao redor do planeta, e os de Juan-les-Pins, Montreux, Viena, Glastonbury, Montreal, Red Sea (realizado em Eilat, Israel), Chicago e Estoril, foram alguns dos que participou.

O importante crítico Leonard Feather escreveu acerca da importância de Elvin para o desenvolvimento da bateria jazzística: “Sua principal conquista foi a criação do que poderia ser chamado de ‘círculo de som’, um continuum em que nenhuma batida era, necessariamente, indicada por um sotaque específico. Sua pegada era extremamente dinâmica e ele sempre foi ritmicamente fundamental para todos os grupos dos quais fez parte”.

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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

NO CÉU, COM DIAMANTES

“Há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”. Shakespeare estava coberto de razão. Um mistério profundo envolve a breve e iluminada existência de Clifford Brown. Nascido em Wilmington, estado de Delaware, no dia 30 de outubro de 1930, este verdadeiro gigante do jazz teve uma trajetória marcada por eventos surpreendentes e seu desaparecimento precoce faz com que, até hoje, jazzófilos do mundo inteiro se perguntem: o que ele poderia ter feito se tivesse vivido mais quinze ou vinte anos?

Ao contrário da maioria dos músicos de jazz, seu talento musical não se manifestou na infância. Apenas na adolescência é que Brown iniciou-se nas artes do trompete, instrumento que ganhou do pai quando completou treze anos. Apesar do início tardio, Clifford não demorou a demonstrar uma aptidão quase que sobrenatural para a música.

Em pouco tempo, já fazia parte da orquestra da escola e, paralelamente à educação formal, começou a estudar música com o trompetista e bandleader Robert “Boysie” Lowery. As aulas eram ministradas no porão da casa de Lowery que, mais que um simples professor, era um grande entusiasta do talento de Brown e não hesitou em agregar o trompetista à sua própria orquestra, “The Little Dukes”, integrada apenas por seus jovens alunos.

Em uma entrevista, deu o seguinte depoimento acerca do pupilo: “Quando você ouve qualquer grande trompetista da atualidade, você está ouvindo ecos de Clifford Brown. Ele trabalhava duro e praticava todos os dias. Pouca gente sabe, mas Clifford tocava piano quase tão bem quanto o trompete. Sua técnica, seus improvisos, sua capacidade de entender os outros músicos, eram fantásticos. Ele possuía uma sonoridade rara e era único na maneira de passar a sua mensagem musical”.


Na escola, a Howard High School, Brown também estudava trompete clássico com Harry Andrews e com Sam Wooding, o criador de uma das primeiras orquestras sinfônicas integradas apenas por músicos negros. Mas a grande paixão do jovem trompetista era mesmo o jazz e foi pelas mãos de Lowery que o ele participou de suas primeiras gigs na cidade natal e na Filadélfia, para onde se mudou em 1948, após a conclusão do colegial.


Na nova cidade, ia se tornando, pouco a pouco, um nome respeitado. Um dos seus admiradores era ninguém menos que o grande Fats Navarro, com quem chegou a se apresentar em clubes da região. Clifford participou de jams ao lado de outros grandes músicos que passaram por Filadélfia, como Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Kenny Dorham e J. J. Johnson, impressionando a todos com a sua técnica e sua enorme musicalidade.


Em 1949, ingressa na University of Delaware, através de uma bolsa de estudos, mas a universidade havia desativado o seu departamento de música. O trompetista não se deixou abater e optou pelo curso de matemática. O tempo livre era dedicado à prática do trompete e às gigs em Filadélfia. Numa delas, conheceu o baterista Max Roach, que o encorajou a não abandonar os estudos musicais. No início de 1950, Clifford se transfere para o Maryland State College, onde sua bolsa de estudos era aceita.


Na nova universidade, que possuía um departamento de música em plena atividade e mantinha uma orquestra de 16 integrantes, ele dá especial atenção aos estudos de arranjo e composição. Em junho daquele ano, quando as coisas pareciam estar bem encaminhadas, ele sofreu um grave acidente automobilístico, que o deixaria hospitalizado por quase seis meses.


Durante o período no hospital, Clifford recebeu a visita de Dizzy Gillespie, que lhe deu muito estímulo para encarar o doloroso processo de recuperação e fisioterapia. Somente em meados de 1951, totalmente recuperado dos ferimentos, é que ele voltaria a tocar profissionalmente.


Seu retorno aos palcos foi saudado com muita alegria na Filadélfia e durante algum tempo, Brown fez parte do grupo de R&B do baterista Chris Powell, irmão de Bud Powell. A banda, chamada “The Blue Flames”, era uma das mais populares da região da Filadélfia e influenciaria jovens músicos como Bill Halley. Foi com ela que o trompetista entrou pela primeira vez em um estúdio de gravação, em março de 1952. Em breve, Clifford se consolidaria como um respeitado sideman, podendo ser ouvido em álbuns de nomes como Dinah Washington, Art Farmer, Helen Merrill, Sarah Vaughan, Lou Donaldson e J. J. Johnson.


Em meados de 1952, Clifford foi contratado pelo pianista, compositor e arranjador Tadd Dameron e muda-se para Atlantic City. No ano seguinte, é a vez do vibrafonista Lionel Hampton recrutar Brown para a sua big band. Com Hampton, o trompetista faz a sua primeira excursão à Europa e em pouquíssimo tempo era um dos mais assediados músicos da orquestra.


Art Farmer, membro da orquestra, recorda a convivência com Clifford: “Confesso que fiquei com inveja de sua habilidade ao trompete, mas ‘Brownie’ era uma figura humana tão doce e tão calorosa que era impossível não gostar dele. Eu passei a adorar aquele sujeito, embora, como trompetista, ele tivesse tornado as coisas bem complicadas pra mim”.


Datam dessa época as célebres gravações para o selo francês Vogue, que tornariam Brown respeitado no mundo do jazz e lhe dariam o status de astro em ascensão. Juntamente com outros colegas de banda, como Art Farmer, Gigi Gryce e Jimmy Cleveland, e com o apoio de músicos franceses, como o pianista Henri Rénaud e o baixista Pierre Michelot, o trompetista deixou boquiabertos crítica e público com suas atuações demolidoras.


Outro membro da orquestra de Hampton, o trompetista Quincy Jones, elaborou os arranjos. Em uma entrevista, Jones foi enfático ao falar das qualidades humanas de Brown, tão superiores quanto as suas qualidades musicais: “Ele tinha consciência e compreensão inteligente dos problemas econômicos, sociais e morais que costumam confundir os músicos de jazz, levando-os algumas vezes a uma rebeldia sem saída. Seu nome vai permanecer como um símbolo dos ideais que o verdadeiro músico jazz deve defender”.


O lado humano de Clifford, aliás, é uma unanimidade: era um dos sujeitos mais decentes, íntegros e desprovidos de vaidade do meio jazzístico. Não bebia, não fumava e nem usava drogas, mas não era um moralista. Ao contrário, mostrava-se sempre solidário aos dramas de seus companheiros de profissão e costumava promover concertos beneficentes, para ajudar colegas em dificuldade.


Em fevereiro de 1954, o trompetista havia causou furor no mundo do jazz, graças à sua participação incendiária no álbum “Night At Birdland – Vols. 1 & 2”, sob a liderança de Art Blakey.  Esse disco mostra uma espécie de embrião dos Jazz Messengers e conta com as participações de Horace Silver no piano, Curly Russell no contrabaixo e Lou Donaldson no sax alto. No final daquele ano, Clifford recebeu o New Star Award, conferido pela Down Beat, em votação da crítica.


Atendendo a um convite de Max Roach, que havia se impressionado com a sua atuação no grupo de Blakey, o trompetista se muda para Los Angeles. Na Califórnia, os dois montam o “Clifford Brown-Max Roach Quintet”, cuja importância e influência para a história do jazz só encontram paralelo com os Jazz Messengers de Blakey, o quinteto de Miles Davis do final dos anos 50 e o quarteto de Coltrane dos primeiros anos da década de 60.


O impacto do grupo de Brown e Roach foi tremendo e ajudou a revigorar o idioma bop, consolidando uma vertente mais vigorosa, hoje conhecida como hard bop. As primeiras gravações foram realizadas em Los Angeles, em maio de 1954. O grupo contava ainda com Teddy Edwards no sax tenor, Carl Perkins no piano e George Morrow no contrabaixo.


Pouco tempo depois, duas mudanças importantes. Saem Edwards e Perkins e entram os não menos talentosos Harold Land e Richie Powell (outro irmão de Bud Powell). Em agosto daquele ano essa formação entrou novamente no estúdio para gravar gemas como “Jordu”, de Duke Jordan, “Joy Spring” e “Daahoud”, dois temas de Clifford que se tornariam clássicos do jazz.


No final de 1954, o quinteto fez uma vitoriosa excursão pelos Estados Unidos, sempre lotando clubes e ginásios. Cidades como Nova Iorque, Boston, Pittsburgh, Baltimore, Washington, Saint Louis, Cleveland, Detroit, Chicago e Filadélfia receberam com entusiasmo aquele que era saudado como o novo Messias do Jazz. O sucesso rendeu a Brown o convite para gravar “With Strings”, onde o trompetista revisita clássicos como “Laura”, “Lullaby of Birdland”, “Yesterdays” e “Willow Weep For Me”, secundado por uma orquestra de cordas.


Nos dias 23, 24 e 25 de fevereiro de 1955, o quinteto de Brown e  Roach entrou nos estúdios da EmArcy, em Nova Iorque, para gravar um dos seus álbuns mais geniais: “Study in Brown”. Para abrir os trabalhos, o tema escolhido foi a incendiária “Cherokee”, de Ray Noble, executada na velocidade da luz. O calmo e sereno Brown se transfigura ao colocar o trompete nos lábios. Seu fraseado é cortante e seus improvisos , ensandecidos. O criativo Land é um solista de grandes recursos e se ombreia ao trompetista em agilidade, potência sonora e clareza de idéias. Roach é um dos mais técnicos e dinâmicos bateristas da história do jazz e suas intervenções são sempre viscerais.


A seguir, um tema de autoria de Powell, “Jacqui”, no qual o pianista brilha na parte rítmica e se agiganta nos solos, mostrando a força da genética familiar. Land e Brown atacam em uníssono e revelam uma enorme cumplicidade. Ao improvisar, trompete e saxofone não economizam acordes, despejando uma sonoridade vigorosa e rica em idéias harmônicas.


Na rápida “Swingin’”, de Brown, as frases se repetem de maneira vertiginosa e a temperatura se eleva a níveis vulcânicos. O trompetista passa em revista os registros grave, médio e agudo do seu instrumento com uma ferocidade e uma volúpia impressionantes. Roach e Land cometem solos igualmente empolgantes, enquanto Morrow e Powell acompanham a fúria dos companheiros com uma sólida competência.


“Land’s End”, composta pelo saxofonista, é um tema relaxado, executado em tempo médio. A percussão de Roach atinge um novo patamar de infalibilidade e sua interação com Morrow é quase que telepática. “George's Dilemma” é outra composição de Brown, que flerta com os ritmos afro-caribenhos e apresenta performances irretocáveis de Powell, Land e, principalmente, do exuberante trompetista.


A empolgante “Sandu” é um animado blues em tempo médio e reflete a grandeza do compositor Clifford. Se como instrumentista ele se alinha entre os trompetistas mais inventivos e bem-dotados tecnicamente, o seu talento composicional não é menos fulgurante. O caleidoscópio rítmico de Roach trafega pelo blues e pelo bebop com igual maestria. A sonoridade encorpada de land, que enfatiza os registros mais graves do sax tenor, transmite a sensação de opulência indispensável ao blues.


Brown ainda contribuiria com mais um tema, “Gerkin for Perkin”, hard bop pulsante, no qual o seu trompete mágico reina de forma absoluta. A obscura “If I Love Again”, de Ben Oakland e Jack Murray, é executada em tempo ultra rápido. Clifford parece se sentir especialmente à vontade nesse contexto e a poderosa sucessão de acordes que ele extrai do seu instrumento é impressionante. Land é um parceiro arrojado e não se intimida com a eloqüência do trompetista, construindo solos fluidos e concatenados.


É emblemático que o tema escolhido para encerrar o disco seja um dos temas mais cultuados da Era do Swing: “Take The A Train”, de Billy Strayhorn. A versão do quinteto, vigorosa e inflamada, deixando claro que o bebop é um passo adiante na linha evolutiva do jazz e não propriamente uma ruptura com as escolas que o precederam. As atuações de Land, Brown e Powell são espetaculares, mas o maior destaque individual vai, sem dúvida, para a vulcânica performance de Roach. Um álbum que representa aquilo que de melhor Clifford Brown produziu em sua curta, mas iluminada, carreira.


Essa formação se manteve estável até dezembro de 1955, quando Land saiu do grupo, por motivos de natureza familiar, sendo substituído por Sonny Rollins. Na época, Rollins despontava como o mais talentoso saxofonista do hard bop e ninguém tinha dúvidas de que em pouco tempo teria uma estatura comparável aos seus ilustre predecessores Dexter Gordon, Coleman Hawkins e Lester Young.


A chegada de Rollins deu ainda mais consistência ao grupo e tornou-o ainda mais vibrante, como se pode comprovar no histórico “At Basin Street” (Verve, 1956). A influência de Brown sobre Rollins, que naquele período estava profundamente envolvido com a heroína, extrapolou o âmbito estritamente musical e, graças ao apoio do amigo, durante um bom tempo o saxofonista se manteve distante das drogas.


O próprio Rollins certa vez declarou: “Clifford teve uma profunda influência sobre a minha vida pessoal. Ele me mostrou que era possível levar uma vida saudável, sem excessos, e ainda assim ser um bom músico de jazz. ‘Brownie’ possuía uma sabedoria pouco comum para um sujeito de apenas vinte e cinco anos. Ele foi como uma estrela cadente, que em um momento você vê e no momento seguinte ela já desapareceu de sua vista”.


Aliás, essa firmeza de caráter de Brown era outra de suas características mais marcante. Ele era radicalmente contra a prática, comum na época, de se contratar músicos de renome, para tocar com sessões rítmicas locais, o que diminuía consideravelmente o valor total dos cachês. Ou o quinteto se apresentava em sua formação integral ou as propostas dos donos de clube não eram sequer ouvidas.


Em uma entrevista da época, ele se manifestou sobre o assunto: “Os donos de clube querem contratar apenas estrelas e querem economizar contratando acompanhantes locais. Eu e Max recebemos várias propostas nesse sentido, para tocar em cidades como Nova Iorque e Chicago, para atuarmos com músicos da própria cidade, mas jamais concordamos. A menos que contratem todo o grupo, não vamos aceitar. Somos uma unidade e se desejamos permanecer juntos, temos que trabalhar juntos em todas as circunstâncias”.


A união do grupo era algo muito nítido. Mesmo depois de ter saído do quinteto, Harold Land manteve a amizade com Clifford e dá o seu testemunho do período em que tocaram juntos: “Havia um clima de camaradagem muito forte entre todos os membros do grupo. Nós éramos como uma família e mesmo pessoas de fora conseguiam perceber a nossa ligação. Aquilo era algo raro, pois em poucos grupos encontrei tamanho companheirismo e respeito mútuo”.


Na noite chuvosa de 26 de junho de 1956, Brown viajava da Filadélfia para Chicago, onde o quinteto iria se apresentar. No automóvel estavam também o pianista Richie Powell e a esposa deste, Nancy, que dirigia o veículo. Na altura de Bedford, ainda no estado da Pensilvânia, ela perdeu o controle da direção e o veículo caiu em um precipício. Nenhum dos ocupantes sobreviveu.


O corpo do trompetista foi enterrado no Mount Zion Cemetery, em sua Wilmington natal. O acidente aconteceu no dia em Clifford e a esposa, LaRue, comemoravam o segundo aniversário de casamento. Ela, que também completava 22 anos naquele mesmo dia, havia pedido ao marido que não viajasse a Chicago, por conta das péssimas condições do tempo. Sua última recomendação foi para que Brown não deixasse, em hipótese alguma, que Nancy Powell (que era míope e havia tirado a habilitação há bem pouco tempo) dirigisse o carro.


Brown recebeu diversas homenagens póstumas. A mais emocionante lhe foi prestada pelo saxofonista Benny Golson, que louvou a memória do amigo em sua belíssima composição “I Remember Clifford”. O trompetista foi incluído, postumamente, no “Jazz Hall of Fame” da revista Down Beat, em 1972. Helen Merrill, que em 1954 havia gravado um disco com Brown pela EmArcy, dedicou-lhe o disco “Brownie: Homage to Clifford Brown”, de 1995, no qual está acompanhada por trompetistas como Lew Soloff, Tom Harrell, Wallace Roney e Roy Hargrove.


Desde 1989, Wilmington sedia o “Clifford Brown Jazz Festival”, realizado anualmente e que já recebeu artistas de primeira linha como Junior Mance, Rufus Reid, Roy Haynes, Javon Jackson, Maria Schneider Orchestra, Stanley Clarke, McCoy Tyner, Curtis Fuller, Diane Schurr, Lou Donaldson, Gonzalo Rubalcaba, Ahmad Jamal, Terrell Stafford, Kenny Barron, Herbie Hancock, Wynton Marsalis, Cyrus Chestnut, Michael Brecker e os brasileiros Flora Purim, Airto Moreira e Ivan Lins.


Passados mais de cinqüenta anos de sua morte física, Clifford Brown está mais vivo do que nunca. Sua influência pode ser facilmente observada na obra de trompetistas das mais diversas gerações, como Donald Byrd, Lee Morgan, Booker Little, Freddie Hubbard, Woody Shaw, Arturo Sandoval, Valery Ponomarev, Wynton Marsalis, Terell Stafford e Cláudio Roditi.


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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

TROMBONE E TULIPAS


Os fãs do jazz ficaram bastante entristecidos quando abriram a página do trombonista, compositor e arranjador Bob Brookmeyer, no dia 17 de dezembro de 2011. Uma nota, escrita pela família do músico, dava conta do seu falecimento, no dia anterior. Em um dos trechos, pode-se ler: “É com enorme pesar que informamos que Bob Brookmeyer morreu na noite passada, três dias antes do seu aniversário de 82 anos. Ele foi uma força vital na música, tendo participado de alguns dos maiores grupos da história do jazz e que até hoje continuam a ser admirados”.

Nascido no dia 19 de dezembro de 1929, em Kansas City, no Missouri, recebeu dos pais o nome de Robert Edward Brookmeyer. Seu primeiro instrumento foi o clarinete, que aprendeu a tocar na infância. Durante a adolescência, freqüentou o Kansas City Conservatory of Music, onde aprofundou os estudos musicais e passou a dominar o trombone e o piano. Para compensar a infância difícil, ele ouvia jazz compulsivamente, em especial a máquina de swing de Count Basie.

A primeira vez em que Bob assistiu à orquestra de Basie foi em 1941, durante uma matinê dominical no Tower Theater, em Kansas City. Levado ao concerto pelo pai, ele jamais esqueceria aquele momento mágico: “Eu fiquei extasiado. Pela primeira vez em minha vida eu me senti bem, pois eu não era o que se podia considerar uma criança feliz”.

Apaixonado pela obra de Bach, Mozart, Haydn, Debussy e Stravinsky, desde que iniciou os estudos musicais Bob sempre demonstrou grande interesse por arranjo, composição e regência. Uma de suas composições chegou a receber o Carl Busch Prize for Choral Composition, quando ainda estava no conservatório.

Aos dezesseis anos, Bob foi apresentado à música de Charlie Parker, outro nativo de Kansas City que vinha causando furor nos meios jazzísticos com a sua linguagem inovadora. Bob costumava ficar horas ouvindo e transcrevendo as gravações de Parker, que passou a exercer sobre ele uma enorme influência, e o bebop se tornou um elemento fundamental e definitivo em sua formação musical.

O jovem abandonou os estudos no conservatório, antes da graduação, para tentar a carreira profissional. Até então, ganhava algum dinheiro escrevendo arranjos para orquestras de baile da região de Kansas City. Seus primeiros empregos, como pianista, foram nas orquestras de Tex Beneke e Ray McKinley, onde também atuava o cantor Louie Prima, no terço final da década de 40. Em 1946, excursionou com o bandleader Orrin Tucker, apresentando-se no Aragon Ballroom, em Chicago, onde participou de gigs com músicos locais como Lou Levy, Frank Rosolino, Ira Sullivan e Max Bennett.

Ainda durante os anos 40, quando fazia parte da banda do baterista Mel Lewis, Brookmeyer mudou-se para Nova Iorque, onde iniciou uma bem-sucedida carreira como freelancer, acompanhando gente do naipe de Charles Mingus, Coleman Hawkins, Bucky Clayton, Pee Wee Russell, Howard McGhee, Charlie Rouse, Elmo Hope, Eddie Sauter, Ben Webster e Teddy Charles. Durante aquele período Bob optou definitivamente pelo trombone de válvula, instrumento que tocava desde a infância, mas que até então havia ficado em um plano secundário.

Sua grande influência, como trombonista, era Bill Harris, um dos mais destacados membros da big band de Woody Herman. Nessa época, Brookmeyer integrava a orquestra do modernista Claude Thornhill, com quem permaneceu por cerca de um ano. Ali, pôde conviver com figuras importantes, como o pianista Gil Evans, responsável pelos arranjos, os saxofonistas Gene Quill e Brew Moore e o contrabaixista Teddy Kotick.

Em 1951 o trombonista viveu uma experiência traumática. Ele havia sido recrutado pelo exército, servindo em uma base em Columbia, e atuava na orquestra da corporação. Bob tinha uma convivência bastante próxima com os músicos negros, o que despertou a ira de um dos seus superiores. O oficial, um imbecil racista, passou a perseguir Brookmeyer, acusando-o de possuir “tendências homossexuais”, acusação que acarretou em seu desligamento, seis meses depois do ingresso nas forças armadas. Melhor para o jazz!

Após a dispensa, ele passou alguns meses na orquestra de Woody Herman e, em seguida, se juntou ao saxofonista Stan Getz, estabelecendo-se em Los Angeles. A parceria com Getz rendeu alguns ótimos álbuns, mas foi desfeita em 1954. Bob então foi contratado por Gerry Mulligan, para substituir o astro em ascensão Chet Baker em seu quarteto sem piano.

Data dessa época a sua admiração pelo trabalho de J. J. Johnson, de quem se tornou amigo pessoal e sobre quem declarou certa vez: “Ele, Dizzy Gillespie e Charlie Parker são os caras. Para um trombonista, a transição do swing para o bebop era algo extremamente difícil e J. J. conseguiu resolver os problemas harmônicos e de timbre de uma maneira completamente revolucionária. J. J. é um verdadeiro inovador, um músico que toca melhor a cada ano. Ele é o Charlie Parker do trombone”.

Tanto Mulligan quanto Brookmeyer eram exímios compositores e arranjadores. O quarteto foi, naturalmente, estendido para um sexteto, complementado pelo trompetista Jon Eardley, pelo tenorista Zoot Sims, pelo contrabaixista Red Mitchell (depois substituído por Bill Crow) e pelo baterista Larry Bunker (que posteriormente daria lugar a Dave Bailey). Com essa formação, o sexteto abrilhantou o mundo do jazz com discos seminais, como “California Concerts – Vol. 2” (Pacific Jazz, 1954) e “Mainstream of Jazz” (Mercury, 1955).

Mulligan e Brookmeyer se tornariam grandes amigos e juntos comandariam, na década seguinte, a Concert Jazz Band. Em 1958 foi a vez de Bob se juntar ao saxofonista e clarinetista Jimmy Guiffre, em um trio complementado pelo guitarrista Jim Hall. Usando o trombone no lugar do contrabaixo, o nada ortodoxo trio de Giuffre era considerado revolucionário à época e foi, sem dúvida alguma, um dos combos mais influentes do West Coast Jazz.

Embora tenha gravado vários discos em seu próprio nome, ele especializou-se em roubar a cena em discos liderados por outros músicos – tanto é que em alguns deles seu nome aparece com destaque nos créditos. Foi assim no ótimo “The Al Cohn Quintet Featuring Bob Brookmeyer” (Coral Records, 1956) e no sensacional “Jimmy Raney Featuring Bob Brookmeyer”.

Este último foi gravado para a ABC-Paramount (cujo catálogo atualmente pertence à Verve), com produção de Creed Taylor e apresenta Raney e Brookmeyer secundados por uma sessão rítmica fabulosa: Hank Jones ou Dick Katz no piano (com quatro faixas para cada), Osie Johnson na bateria e Teddy Kotick no contrabaixo. As sessões de gravação foram feitas durante nos dias 23 julho e 1º de agosto de 1956 e o resultado é esplendoroso.

Para iniciar os trabalhos, Raney escolheu “Isn't It Romantic?”, uma das mais encantadoras pérolas da dupla Richard Rodgers e Lorenz Hart. A versão apresentada pelo quinteto é sincopada e dançante, com atuações de gala do guitarrista e de Brookmeyer. O piano de Katz é lépido e arisco, à altura da expertise dos dois principais solistas e se encaixa à perfeição com o ritmo seguro imposto por Johnson e Kotick.

Em “How Long Has This Been Going On?”, dos irmãos George e Ira Gershwin, o quinteto apresenta um arranjo calcado no blues. Raney engendra delicadas inflexões harmônicas e o acompanhamento repleto de sutilezas de Katz realça a elegância da composição. O trombone de Brookmeyer, lânguido e vaporoso, transborda sensualidade e lirismo, e o diálogo em contraponto que mantém com a guitarra na introdução do tema é um dos momentos mais inspirados do disco.

O trombonista contribui com dois temas de sua autoria, “No Male for Me” e “Get Off That Roof”. Raney  não se faz de rogado e também apresenta duas composições, “The Flag Is Up” e a supersônica “Jim’s Tune”. Em comum, as quatro apresentam o traço da inventividade, do bom gosto e do cuidado harmônico. São temas de andamento rápido e eminentemente inseridos na linguagem bop, onde não faltam improvisações criativas, frases articuladas e muito balanço.

O arranjo delicado de “Nobody Else But Me”, gema do repertório de Jerome Kern e Oscar Hammerstein, ressalta as qualidades melódicas da canção. Executada em um irresistível tempo médio, a faixa traz uma atuação arrojada de Raney, cujo dedilhado, mesmo nos momentos mais frenéticos, é tão preciso que não compromete nem um pouco a sua articulação. Brookmeyer é um solista pouco afeito a malabarismos. Sua forma de tocar é sóbria e, ao mesmo tempo, eloqüente, mesmo usando as notas com moderação. Seus improvisos não possuem o furor intuitivo de um J. J. Johnson, mas são fluidos e muito bem concatenados.

O disco encerra com uma pungente interpretação de “Too Late Now”, de Alan Jay Lerner e Burton Lane. A elegância contida de Brookmeyer contrasta com a impetuosidade de Raney, que mesmo nas baladas conserva a pegada caudalosa. Hank Jones é o elemento que dá coesão a essas duas abordagens tão distintas e sua atuação, seja na parte rítmica, seja na improvisação, é sempre elegante. Um álbum extraordinário, que recebeu do crítico Thom Jurek, do site Allmusic, quatro merecidas estrelas.

Depois dessa gravação, Bob permaneceu como um dos mais disputados acompanhantes do pedaço, embora jamais tenha deixado de lançar álbuns em companhia de parceiros ilustres. Em 1959, durante as gravações do cultuado “The Ivory Hunters” (Blue Note), ele trocou o trombone pelo piano, dividindo o estúdio com ninguém menos que o genial Bill Evans. Na retaguarda, os elegantes Percy Heath e Connie Key, responsáveis pela cozinha do Modern Jazz Quartet.

Em 1960, volta a trabalhar com Gerry Mulligan na Concert Jazz Band, atração fixa do clube Basin Street East (indo depois para o Village Vanguard, onde gravou um disco ao vivo para a Verve). A orquestra contava com luminares como o baterista Mel Lewis, o baixista Buddy Clark, trompetista Clark Terry e o saxofonista Gene Quill. Brookmeyer dividia os arranjos com o vibrafonista Gary McFarland, precocemente falecido em 1971, antes de completar 40 anos.

Durante aquela década, o trombonista manteve uma concorrida agenda como músico de estúdio. Também atuou em programas televisivos como “The Merv Griffin Show” e escreveu arranjos para Ray Charles, Maynard Ferguson, Cannonball Adderley e Jack Teagarden. Duke Ellington chegou a convidá-lo para fazer parte de sua orquestra, mas seus muitos compromissos como músico de estúdio impediram a concretização da parceria.

Do ponto de vista eminentemente jazzístico, seu trabalho mais relevante naquele período foi o quinteto que montou com Clark Terry, mas ele também realizou gravações com George Russell, Gary Burton, Anita O'Day, Stan Getz, Al Cohn, Woody Herman, Manny Albam, Joe Morello e muitos outros. A partir de 1966, foi um dos principais integrantes da Thad Jones-Mel Lewis Jazz Orchestra, agregando as funções de intérprete e diretor musical, até 1968, quando se mudou para Los Angeles.

Como líder, ele fez diversas gravações para a Verve nos anos 60, mas seu grande disco daquele período é “Bob Brookmeyer and Friends”, gravado para a Columbia em 1964, onde ele está acompanhado por um quarteto de jovens e talentosos músicos, como o pianista Herbie Hancock, o baixista Ron Carter, o vibrafonista Gary Burton e o baterista Elvin Jones.

No início da década de 70, Brookmeyer enveredou pelo ensino musical. Enfrentou sérios problemas com o álcool, mas aos poucos conseguiu vencer a dependência. Na Califórnia, trabalhou em orquestras de estúdios de cinema e TV e estudou regência com Joel Thome e composição com Earle Brown. Afastado do jazz, voltou à rotina de apresentações em clubes graças à insistência d e amigos como o saxofonista Bill Holman e o pianista Roger Kellaway. Após uma excursão de três meses pela Europa, a convite do antigo parceiro Stan Getz, ele voltou definitivamente ao mundo do jazz.

A partir da segunda metade daquela década, ele passou vários anos na Europa, dividindo-se entre Estocolmo, na Suécia, Copenhagen, na Dinamarca (onde trabalhou como diretor musical da Danish Radio Big Band) e Colônia, na Alemanha, onde lecionou e trabalhou em orquestras de rádio (uma delas foi a conceituada WDR Big Band) e TV. De volta aos Estados Unidos, em 1978, montou um quarteto, do qual faziam parte o então jovem guitarrista Jack Wilkins, o baixista Michael Moore e o baterista Joe LaBarbera.

No ano seguinte, reencontrou o antigo parceiro Jim Hall e os dois voltaram a tocar juntos por cerca de um ano, em um duo que recebeu vários elogios por parte da crítica especializada. O resultado da parceria pode ser conferido no álbum “Live at The North Sea Jazz Festival” (Challenge Jazz), gravado ao vivo na edição de 1979 do célebre festival holandês.

Durante a década de 80, Bob se dedicou à elaboração de peças eruditas, influenciado pelas composições do polonês Witold Lutoslawski, cujo “Concert for Cello and Strings” era o preferido do trombonista.  Bob costumava passar horas ouvindo a interpretação feita pelo fenomenal Mstislav Rostropovich. Ele também se firmou como um reputado educador musical, lecionando na Manhattan School of Music, em Nova Iorque, e no New England Conservatory of Music, em Boston, Massachusetts.

Brookmeyer voltou a atuar com a Mel Lewis Orchestra, que passou a adotar esse nome depois que o outro líder, Thad Jones, se mudou para a Europa. Em 1988, Bob assumiu o cargo de diretor da BMI Composers Workshop, entidade que congrega os compositores de jazz e que administra a produção e arrecadação de seus direitos autorais, além de promover seminários e conceder bolsas de estudos a jovens músicos e compositores.

Em 1991, Bob fixa residência em Roterdã, na Holanda, passando a trabalhar como músico e arranjador da The Metropole Orchestra. Três anos depois, cria, juntamente com o baterista John Hollenbeck, a New Art Orchestra, baseada em Lubeck, na Alemanha. Formada por jovens músicos europeus, a orquestra realiza várias gravações para os selos Challenge Jazz e Artistshare, gravadora fundada pela bandleader Maria Schneider.

Um destes discos, “Spirit Music” (Artistshare, 2006), chegou a ser indicado ao prêmio Grammy, em 2007, na categoria “Best Large Jazz Ensemble”. Em 2008, uma de suas composições na seara erudita, “Music for String Quartet and Orchestra”, foi gravada pelo Gustav Klimt String Quartet, juntamente com a Metropole Orchestra, e também foi lançado pela Artistshare. Ainda no campo da música erudita, Brookmeyer teve suas composições apresentadas no prestigioso Schleswig-Holstein Musik Festival, realizado na Alemanha.

Nos últimos anos, Brookmeyer manteve-se extremamente ativo, participando de festivais como Cheltenham, Montreal e Estoril, aparecendo como solista convidado da BBC Big Band e da Ed Partyka Jazz Orchestra, gravando com gente do gabarito de Kenny Wheeler, tocando com o octeto de Hans Koller e liderando seu próprio quarteto, integrado por Brad Shepik (guitarra), Drew Gress (baixo) e John Hollenbeck (bateria).

A National Endowment for the Arts concedeu-lhe o título de Jazz Master em 2006. Em 2011, foi indicado para mais um Grammy Award, na categoria “Best Arrangement”, por seu trabalho no álbum “Forever Lasting” (Pony Canyon), da Vanguard Jazz Orchestra. Sua última gravação foi o disco “Standards”, realizada em setembro de 2011 e que conta com as presenças da New Art Orchestra e da cantora holandesa Fay Claassen.

O trombonista vivia com a esposa, Janet, em uma propriedade rural em Grantham, New Hampshire. Ele faleceu naquela cidade, no dia 15 de dezembro de 2011, nas dependências do New London Hospital, devido a uma parada cardíaca, poucos dias antes de completar seu 82º aniversário.

Como trombonista, influenciou contemporâneo como Carl Fontana e músicos da nova geração, como Scott Whitfield e Robin Eubanks. Sua influência como compositor para big bands pode ser percebida no trabalho de gente como Maria Schneider, Jim McNeely e Darcy James Argue. Uma de suas mais preciosas lições vale para todo aquele que quer se aventurar pela música: “O músico deve sentir paixão por seu instrumento e tocá-lo de maneira apaixonada. Mesmo que ele não seja tão bom tecnicamente ou que cometa erros, o importante é tocar com paixão”.

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